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Artigo: ‘O samba de enredo como gênero literário: discurso e identidade comunitária na poesia da Mocidade’

Milton Cunha: “Olá queridos leitores. A partir de hoje começo a publicar o resultado da fascinante experiência de Iniciação Acadêmica que realizamos no Observatório do Carnaval, sob a liderança da Emerita Tania Clemente, pesquisadora do Museu Nacional. Doze alunos sambistas se inscreveram, das mais diversas origens: cantores, mestres de bateria, carnavalescos, todos desejosos de empreender pesquisa acadêmica sobre assuntos que lhes interessavam, mas ainda sem as diretrizes da teoria da pesquisa. Pois bem, seis conseguiram encerrar seus textos declaratórios das hipóteses e possibilidades que serão contempladas em futuros mergulhos, em cursos de graduação nas universidades. Começamos com a divina passista da Mocidade, Paula, que enxerga identidade e pertencimento nas letras dos sambas que sempre cantou pelos lados da Vila Vintém. Ela tem este lugar de fala do sambista que quer documentar e expressar a grandeza de sua gente. Todos os textos serão publicados nesta Declaração de Intenções: são textos em processo, pesquisa em construção. Mas que dá uma alegria danada a gente ler, porque é o início das investigações teóricas de um povo que tem muita prática e quer se aventurar por esta forma de documentação que é a Academia. O cânone está em festa. Viva o Episteme Ziriguidum e a força destes guerreiros pesquisadores que além do saber tem a disposição. Boa leitura!”

Iniciação Científica – OBCAR/UFRJ
Paula Cristina de Oliveira Mathias
Auxílio: Wallace Araujo de Oliveira

REFLETINDO SAMBA DE ENREDO COMO LITERATURA

“O sambista não precisa ser membro da academia. Ao ser natural em sua poesia, o povo lhe faz imortal”. (Candeia)

Entende-se como Literatura a forma de expressão de um pensamento, de uma cultura, de uma ideologia. É a habilidade de fazer arte com as palavras e convencer através delas. Devemos entender, portanto, que sua matéria é a palavra, não necessariamente a escrita, já que a Literatura é anterior a esta, pois diversas civilizações antigas, ágrafas, sempre refletiram sobre o mundo e seu papel nele; sobre como a humanidade produz suas experiências e saberes, passando ensinamentos através de linguagem alegórica.

Considerando seu caráter oral, analisaremos a Literatura vinculada à música em sua mais brasileira forma de expressão: o samba carioca, mais precisamente em sua ramificação conhecida como samba de enredo. Contrariando, assim, a tendência de se voltar à cultura das elites da sociedade e procuraremos entender como o gênero influenciou e, ainda hoje, influencia na vida social do Rio de Janeiro.

Assim como a Literatura dita “culta”, o gênero que apresentaremos também sofre alterações conforme a época e sua respectiva ideologia. A intenção deste trabalho é tratar o samba de enredo com a importância que merece e evidenciá-lo como grande produção literária brasileira, e que produz discurso identitário.

O conceito de gênero literário está diretamente ligado à finalidade e à situação sociocomunicativa da obra, a qual apresenta características específicas quanto à forma e ao conteúdo, considerando critérios semânticos, sintáticos, fonológicos, estruturais, contextuais etc.

A partir de tal conceituação e perspectiva, a pesquisa em questão analisará o samba de enredo enquanto gênero literário com tendências estéticas e temáticas que representam o pensamento de determinada época, o posicionamento dos compositores e, principalmente, a identidade da agremiação.

Essa análise terá como foco as composições da Mocidade Independente de Padre Miguel na década de 90, época de destaque da escola, contando com três campeonatos. Mas antes disso, precisamos considerar o emblemático carnaval de 1985, cujo enredo “Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas” é tido como marco que fez a agremiação de Padre Miguel se consagrar entre as grandes e proclamar ao carnaval carioca a sua identidade enquanto escola modernista – que tem juventude no nome – e, sendo assim, um ano disparador que tornou possíveis os desfiles, enredos e sambas da década seguinte.

LITERATURA E CONTEXTO

A Literatura surgiu com a necessidade do homem de conservar a sua história através de lendas e controlar a natureza criando mitos e religiões, o que se configura através da oralidade. Com ela, o homem é capaz de transmitir seu pensamento a partir das condições em que vive, sua ideologia, sua cultura.

Literatura está ligada à linguagem humana, à habilidade de fazer arte a partir de signos linguísticos, combiná-los de forma expressiva. Para isso, consideramos os elementos da comunicação, apresentados no esquema a seguir.

Todo ato de comunicação conta com seis elementos, são eles: emissor (quem fala/escreve etc.), receptor (com quem se fala/para quem se escreve etc.), mensagem (o que se fala/escreve etc.), referente (sobre o que se fala/escreve etc.), código (com o que se expressa, pode ser a língua escrita/ falada ou sinais etc.), canal (meio através do qual se transmite a mensagem).

As funções que a linguagem pode assumir depende do foco que o emissor dá aos respectivos elementos da comunicação, como representado no gráfico mais adiante.

Quando o foco do ato comunicativo está na própria mensagem, há a função poética da linguagem, a qual mais nos interessa neste trabalho, pois, no que aqui enfocado, há uma finalidade estética, uma preocupação com a seleção vocabular, recursos sintáticos, sonoros etc., mais do que na mensagem em si. Sendo assim, entendemos a Literatura como uma manifestação artística que tem como matéria-prima a palavra, e o escritor tem liberdade de criar através dela, condicionado a sua ideologia, como conceitua Terry Eagleton:

“Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou ‘imaginativa’, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson, representa uma ‘violência organizada contra a fala comum’. A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana.” (EAGLETON, 2003, p.2)

Considerando o que foi exposto, devemos levar em conta também os outros elementos da comunicação, os quais serão melhor analisados posteriormente, a partir de exemplos de letras de samba, e entendê-los sob a perspectiva do discurso do samba de enredo, o qual é o material deste trabalho.

Assim, entende-se a própria composição de samba como a mensagem; o enredo como referente, pois não há samba de enredo sem enredo; o compositor como emissor; como receptor, tem-se o público em geral (plateia ao vivo e telespectadores), os jurados e a própria agremiação; o código é a própria Língua Portuguesa, mas em muitos momentos podem ser dialetos africanos e ameríndios, por exemplo, adaptando-se ao enredo proposto; e, por fim, temos a oralidade, o canto como o canal através do qual a mensagem é transmitida.

Oralidade e musicalidade

Ainda que se tenha convencionado a literatura vinculada à escrita, esta é posterior ao surgimento daquela que, há milhares de anos, já era passada oralmente por gerações a fim de manter o pensamento da sociedade. Em seus cânones, a história literária inclui produções poéticas de manifestação oral, como a lírica clássica greco-latina, o hinário cristão, as cantigas medievais, canções de gesta etc. Ou seja, a poesia escrita é uma criação posterior, segundo Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas (2010). Como podemos ver:

“Assim, é fácil entender por que as antigas formas musicadas continuam a figurar nos compêndios literários: elas são o modelo, o ponto de partida. Aliás, no caso particular da poesia, o conceito de verso – sem o qual o gênero não pode existir – surgiu com formas orais.” (MUSSA, SIMAS, 2010, p. 9)

Em se tratando de oralidade, consideramos o estudo dos textos musicados de grande relevância, principalmente no Brasil, pelo valor representativo e expressivo, já que somos herdeiros do legado de uma cultura oral, tomando nossas raízes indígenas, africanas e pela influência europeia, em que a poesia era cantada na Idade Média.

E, mesmo não fazendo parte dos cânones, as tradições orais africanas, como a literatura griot, merecem extrema importância, pois estão diretamente ligadas à manutenção de saberes entre as comunidades negras, evidenciando aqui o samba como lugar da negritude.

Outro aspecto que julgamos importante evidenciar, além de ter o importante papel de “contar” a história da humanidade, o pensamento de um povo e de uma época, é o fato de, desde os princípios, a literatura estar voltada às elites da sociedade.

Assim sendo, a música brasileira tem grande importância e, ironicamente, tem sua representação maior, como expressão nacional, uma manifestação surgida entre os populares: o samba. No caso específico deste trabalho, o samba enredo.

Como propôs Alexandre Neiva (2011) em artigo sobre samba e a relevância de estudos sobre esse gênero:

“Se a literatura é uma forma de linguagem que interage com o homem contemporâneo, por que não sondarmos o que a nossa gente pensa ao entrar em contato com os sambas-enredo? Se a literatura, ao mesmo tempo, é algo que não fica indiferente perante a evolução da sociedade, não é sensato pegarmos como matéria-prima (…) algo que esteja bem mais próximo do povo do que, por exemplo, um livro com o português arcaico de Camões e suas já tão distantes aventuras? Não que não seja importante o trabalho com a literatura consagrada, mas não se pode abster-se da manifestação cultural que produz releituras, transforma literatura e gera nova obra literária, como o gênero que queremos evidenciar” (2011).

Surgimento do samba

A importância da história do samba vai além de questões literárias ou musicais, pois se trata do processo de formação do que se tornaria uma das maiores ou, quem sabe, a maior representação da cultura brasileira e explica o rumo das relações políticas e sociais do Rio de Janeiro. Ironicamente, uma história protagonizada pelo povo, que sempre teve um papel secundário na sociedade. Como bem observa Nelson da Nóbrega Fernandes (2001),

“…o fato de o Rio de Janeiro ter sido a capital do Brasil desde 1763 e ter se convertido na maior e principal cidade brasileira, até meados do século XX, vai transformá-la num pólo de atração para pessoas das mais distintas origens e promovê-la a uma espécie de síntese da ‘cultura popular do país’. Aliás, não só um lugar de síntese mas também de principal centro de difusão para as novas modas, idéias, crenças. Além de hábitos e manifestações trazidos pelos escravos e imigrantes”. (FERNANDES, 2001, p.42)

Em se tratando de samba, a palavra deriva do termo semba, que caracteriza a umbigada, coreografia com que se transmite a vez na dança. Até o final do século XIX, o termo samba era usado para designar todos os tipos de música derivados do batuque africano e as respectivas danças, entre elas o jongo, o tambor de crioula, o samba de roda, o samba rural, o partido alto e o lundu. Ou seja, o samba, como o gênero que conhecemos hoje, simplesmente não existia. E o que viria a ser conhecido não se trata apenas de um ritmo africano, mas de um gênero musical nascido de uma cultura “contaminada”, fruto de um ambiente urbano com tendências europeias – sobretudo francesas -; ideias modernistas e nacionalistas; e com habitação majoritária de negros.

O declínio do cultivo de cana-de-açúcar no nordeste, a ascensão da cafeicultura fluminense e a abolição da escravatura são fatores de suma importância para a chegada numerosa de negros para a então capital do Império, o Rio de Janeiro, com que também chega a tradição do samba rural, o qual se definiria justamente pela coreografia, pois “não é uma dança de par, mas coletiva; cuja disposição não é o círculo mas o paralelismo dos dançantes em fileira”(ANDRADE, 1991, p. 136); em que não existe a umbigada.

Mestiços, crioulos e africanos agrupavam-se nas regiões central e portuária da cidade, surgindo a que seria conhecida como Pequena África. E é neste contexto, com inúmeras referências culturais e étnicas, que nascem os tipos de samba, perpetuando-se então o samba amaxixado4, o qual teve seu apogeu na década de 20 e Sinhô como seu principal representante. Esse tipo de samba, porém, “tinha uma divisão rítmica que dificultava o canto por grupos” (MUSSA e SIMAS, 2010, p.13).

Para entender a mudança rítmica sofrida pelo gênero musical, devemos antes considerar a tendência de manifestação da cultura popular em forma de cortejo (procissões religiosas etc.), pois explica a necessidade de adequar a música ao desfile, já que essa tradição também está presente no carnaval de rua carioca desde o século XIX.

Desfilando para ser aceito

A sociedade do Rio de Janeiro era dividida entre morro e asfalto, e não seria diferente nos festejos. Levando em conta o fato de o carnaval do Rio já ser, naquela época, considerado um dos maiores, havia, nos antigos carnavais, o desfile das grandes sociedades, representando o Carnaval Chic da Avenida Rio Branco. Já a Praça Onze passou a ser o reduto das camadas populares, que se divertiam em blocos improvisados e outras formas de cortejo, como cordões e ranchos. Estes, porém, merecem tratamento especial para entendermos o surgimento das escolas de samba e o papel social exercido por elas.

Os ranchos são, provavelmente, de origem baiana, têm estrutura vinda dos ternos de reis e seus primeiros desfiles eram realizados em 6 de janeiro, dia de Reis. E um de seus principais representantes, Hilário Jovino, – uma das figuras primordiais para a história do samba e do negro no Rio, assim como Tia Ciata – foi responsável por transferir os desfiles para os dias de carnaval.

Essas agremiações destacavam-se pela organização e pelas referências europeias nas fantasias e no cortejo em geral. Eram “óperas ambulantes” ou, como preferia ser classificado o Ameno Resedá, tradicional rancho da época, “teatro lírico ambulante”. Diferenciavam-se das demais manifestações pela disciplina e, vale ressaltar, já utilizavam-se de enredos, adotavam uma “pedagogia nacional” e mantinham uma estrutura organizada no cortejo, e neste deveria haver, desde os primeiros concursos, “abre-alas, comissão de frente, alegorias, mestre-sala e porta-estandarte, mestres de canto, coro feminino, figurantes, corpo coral masculino e orquestra” (MUSSA e SIMAS, p.12). Toda essa organização e disciplina – com nítidas referências europeias – era com o intuito de afastamento de tradições africanas, uma vez que negros e mestiços eram tidos, até o século XIX, como de raça inferior e excluídos na sociedade. Era o “branqueamento” como recurso de aceitação.

Samba fazendo escola

Negros e mestiços apropriarem-se do batuque como forma de ressignificação de identidade e reconstrução de suas culturas e seus afetos, e também como mecanismo de inserção na sociedade.

Com referências carnavalescas de ranchos, entre outras manifestações como blocos e cordões, e dos batuques africanos, nascem as escolas de samba no final dos anos 20, com a tentativa dos populares visando aceitação social enquanto o Estado buscava disciplinar suas manifestações. Elas são fruto de diversas influências culturais somadas a interesses políticos.

O Estado controlava todo tipo de manifestação popular, com o agravante da presença da figura do malandro, que sempre estava metido em brigas, arruaças e não tinha trabalho formal – dificilmente um negro tinha trabalho formal. Vale constar aqui que, segundo Mussa, era crime cantar samba, previsto no código penal, na letra da lei.

Em suma, devemos entender as agremiações que estavam por vir como síntese de toda aquela cultura “contaminada” e diversas influências festivas em contato com a organização e disciplina dos ranchos. Em relação à denominação escola de samba, por sua vez, há mais de uma versão para sua origem, porém a convenção da tradição oral atribui a Ismael Silva a criação do termo em alusão à escola de Formação de Professores que funcionava no bairro do Estácio.

Quanto ao título de primeira escola de samba, é quase impossível apontar uma. Com divergências de informação referente a datas de fundação, surgem as primeiras agremiações que se intitulam e se organizam como tal, entre elas Oswaldo Cruz (futura Portela), Vizinha Faladeira, Estação Primeira, Para o Ano Sai Melhor e Cada Ano Sai Melhor. O certo é que esse tipo de organização teve um sucesso inimaginável e deram voz ao pobre, quando este mal poderia se expressar, na cena mais expressiva da cidade: o carnaval.

MODERNIDADE E CULTURA NACIONAL

O início do século XX foi um período de grande efervescência no Brasil e, mais precisamente, no Rio de Janeiro, a então capital da República. Não é finalidade do trabalho tratar de acontecimentos históricos, mas é de grande valia entendermos o contexto que levou o samba ao lugar de sinônimo de nacionalidade.

As Vanguardas Europeias e a Semana de Arte Moderna repercutiram no cenário artístico, político e social do Brasil e a busca de uma identidade nacional fez-se necessária. Como nos mostra a Revista Contemporâneos,

“Após a Semana de Arte Moderna, a busca por uma identidade nacional seguiu outros caminhos. Agora a Nação estaria centrada nas produções artísticas e culturais que os brasileiros produzissem e fossem, portanto, reconhecidas no estrangeiro” (2009).

Nesta época, Paris já ditava moda com a belle époque, sendo vista como cidade ideal a ser copiada, como modelo de urbanismo e arquitetura. O natural seria que a aproximação ao ideal fosse vista como prioridade, e com isso, no Rio de Janeiro, vieram as reformas urbanas, para a europeização da cidade, bem como urbanização e solução dos problemas de insalubridade e o remanejamento das camadas populares por falta de espaço urbano para o grande número de habitantes e como recurso para controlá-los.

O Estado apropriou-se do ideal de nacionalidade, romantizando assim o morro e o mito do malandro, que já não era mais visto “o brigão, o que não trabalha”, é o malandro do jeitinho, como os próprios sambistas começaram a “pintar” como recurso para aceitação.

Com a romantização do morro e do subúrbio, o que julgamos importante é entender como as escolas de samba – e o novo gênero samba, do qual falaremos mais adiante – influenciaram e, ainda hoje, influenciam no ambiente urbano da cidade, seja social, política ou geograficamente, já que bairros surgiram no entorno da linha férrea, uma vez que moradia, transporte e deslocamento sempre foram os principais problemas da cidade, e ao pobre não era permitido viver nas áreas centrais. Muitas das quadras das escolas de samba, por exemplo, encontram-se próximas às estações nos subúrbios ou nos morros da cidade.

Nos deparamos aqui com o que muitos historiadores chamam de mistério do samba ao tentarem entender como esse tipo de manifestação cultural toma proporções tão grandes, a nível nacional, como evidencia Nelson da Nóbrega Fernandes:

“E, para dimensionar este fato, consideramos que é preciso levar em conta que, neste caso, não se trata apenas da ascensão e hegemonia de um gênero de música com origem em seus mais baixos estratos sociais, já que o mesmo se deu com o jazz e o tango. Mais que a música, no caso do samba, havia um espetáculo na cena mais intensamente pública da cidade. Talvez, mais do que em qualquer outra situação, aqui resida a possibilidade de se compreender a perplexidade provocada quando se tenta entender, mesmo ainda hoje, como um tipo de espetáculo produzido por negros e mestiços do Rio de Janeiro, habitantes dos subúrbios, favelas e bairros populares, pode ser tão rápido e eficaz na conquista da hegemonia cultural da cidade. Principalmente se lembrarmos que, naquela época, embora já estivesse sob cerrado ataque de modernistas e nacionalistas, o pensamento dominante ainda era aquele em que negros e mestiços foram concebidos como raças humanas inferiores ou degeneradas, com as quais seria impossível construir uma nação moderna e civilizada”. (FERNANDES, 2001, p.48)

Apoteose ao samba

A partir do que foi exposto até aqui acerca das condições que levaram o samba ao lugar, não só de gênero musical, mas de maior manifestação e síntese da cultura nacional, podemos perceber que a contribuição do “pessoal do morro” vai além de questões sociais, pois legou à nossa literatura um riquíssimo acervo.

Ainda que seus cânones estejam voltados à elite, julgamos de grande relevância estudos sobre o gênero literário que nasceu da necessidade de exaltação de nacionalidade para aceitação social com um ritmo que permitisse ser cantado e dançado em cortejo: o samba de enredo. Um gênero bem peculiar, genuinamente brasileiro, nascido aqui e dizendo respeito a assuntos daqui; bem próximo da epopeia, é como um gênero épico que narra aventuras do herói nacional e do povo brasileiro, e que “pinta” paisagens que só podem ser vistas aqui.

“Entre as espécies de samba, o samba de enredo é certamente a mais impressionante. Porque não é lírico – no que contraria uma tendência universal da música popular urbana. E porque integra o maior complexo de exibições artísticas simultâneas do mundo moderno: o desfile das escolas de samba.

Mais do que isso: porque o samba de enredo é um gênero épico. O único gênero épico genuinamente brasileiro – que nasceu e se desenvolveu espontaneamente, livremente (…). Consideramos este o gênero maior”. (MUSSA e SIMAS, 2010, p.9-10)

Ainda que tenha surgido em subúrbios e morros do Rio de Janeiro e tenha sido feito por pessoas de estratos sociais inferiores, esse gênero literário é, antes de tudo, manifestação artística, inspiração.

Como já observamos anteriormente, a literatura sempre esteve voltada às elites da sociedade e tem o importante papel de “contar” a história da humanidade, o pensamento de um povo e de uma época. Sendo assim, o povo “fala” através do samba.

O primeiro concurso entre as agremiações, vale fazer constar, foi bem diferente do que conhecemos hoje, mas foi precursor no incentivo aos desfiles e fundamental para o samba, como, por exemplo, a proibição de instrumentos de sopro nas baterias e para evidenciar a ligação com religiões afro-brasileiras. O concurso realizado no Engenho de Dentro na época do surgimento das primeiras agremiações tem como fundamental diferença, o fato de não ter havido desfile. O espetáculo era tão somente do samba – não o cortejo.

“O primeiro ensaio de concurso entre as escolas não ocorreu no dia de carnaval. A competição ocorreu em 20 de janeiro do 1929, dia de São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, sincretizado (…) com o orixá Oxóssi.

O concurso foi organizado pelo pai de santo Zé Espinguela e recebeu apoio do jornal A Vanguarda. Conjuntos carnavalescos de Oswaldo Cruz, da Mangueira e do Estácio de Sá concorreram com dois sambas cada, para que o melhor samba fosse escolhido”. (MUSSA e SIMAS, 2010, p. 15-16)

Com o sucesso e repercussão que o samba atingiu, as composições da época exaltavam o samba e o sambista, pois tinham finalmente se integrado ao asfalto. Nos primeiros sambas, porém, não havia definido o conceito de enredo e as agremiações apresentavam mais de uma composição no desfile, no qual os sambas tinham uma parte fixa e outra parte improvisada. Como nos mostra Nelson da Nóbrega Fernandes,

“a primeira era composta por letra previamente conhecida e era cantada pelos puxadores acompanhados pelo coro da escola. A segunda tinha de ser improvisada na hora por sambistas especializados que cumpriam a função de versadores, improvisadores ou solistas. Sem qualquer aparato técnico, o versador deveria ser também dono de potente voz que pudesse ser ouvida entre centenas de pessoas de modo que, ao terminar seus improvisos, todo o conjunto pudesse retomar com voz uníssona a primeira parte. Havia, portanto, a necessidade de um instrumento suficientemente potente que marcasse este momento (…). Daí a importância do surdo de marcação”. (FERNANDES, 2001, p.51)

Com a repercussão dos desfiles e a ideia de uma pedagogia nacional, o Estado passa a investir nos desfiles, surgindo assim a necessidade de padronização nas composições. Segundo Alberto Mussa, em entrevista sobre o tema,

“o surgimento do gênero é tratado como um processo histórico – em vez de se eleger o primeiro samba de enredo da história, porque isso não existe, o que existiu foi um longo processo de formação, com aquisição de várias características estruturais ao longo do tempo. (…)se propôs um conceito formal de verso para o samba de enredo, baseado no padrão rítmico do próprio samba como gênero musical”. (MUSSA, 2010)

Gênero samba de enredo

Para que o samba seja considerado de enredo, antes são levados em conta dois aspectos, os quais Alberto Mussa e Luiz Antônio Simas, em “Samba de enredo: história e arte” (2010), chamam de conceito extrínseco e conceito intrínseco, sendo, respectivamente, a concepção de enredo como o tema exposto pela escola; e a ideia de verso relacionada à musicalidade.

Considerando o primeiro e primordial aspecto, o conceito extrínseco, o samba de enredo é a expressão poética do tema proposto pela escola e deve ter ligação precisa com a narrativa e representação plástica do desfile.

É certo que para um samba de enredo seja indispensável a adequação um enredo, mas, como a própria história nos mostra, esse tipo de samba se desenvolveu com a necessidade de aceleração rítmica para adequação aos desfiles e, assim sendo, devemos levar em consideração o conceito intrínseco, que diz respeito à versificação, que é própria dos gêneros orais. E é de grande importância para entendermos a construção poética do gênero samba de enredo.

“Na poesia escrita, o verso é visualmente identificável na própria estrutura gráfica do texto. Nos gêneros orais, a noção de verso decorre do ritmo da enunciação, que pode ser reforçado por diversos tipos de marcadores, como rimas, por exemplo.

Especificamente no caso da música, o verso se define por algum acidente no contínuo rítmico-melódico, também reforçáveis por marcadores lítero-verbais”. (MUSSA e SIMAS, 2010, p.29)

Desde os sambas amaxixados, as composições exemplificam e evidenciam o próprio processo de formação da música popular urbana carioca, pois trata-se de uma convergência das poéticas africana e portuguesa, uma vez que intercalam uma parte com métrica livre, como no samba de roda – de raiz africana-, e outra com redondilhas, caracterizada por versos curtos, formados 5 ou 7 sílabas poéticas – tradição ibérica, estrutura comum de cantigas medievais, por exemplo.

TENDÊNCIAS TEMÁTICAS E ESTÉTICAS

Como toda produção artística e literária, o samba enredo também se transforma ao passo que os anos avançam e a sociedade e sua ideologia vão mudando. É notável a tendência estética e temática das composições de cada época.

Como justificativa para muitos enredos no decorrer da história, consideramos a questão da Pedagogia Nacional, com a qual se buscou traçar um perfil de nacionalidade e apropriou-se da manifestação cultural popular para doutrinar a sociedade, pois acreditamos que o que historiadores chamam de mistério do samba se dá justamente pelo fato de ser o ponto de fusão de dois extremos da cultura carioca e brasileira como um todo. Os enredos e, principalmente, as respectivas composições de sambas-enredo são expressões populares de narrativas pedagógicas.

É importante entendermos que tudo o que envolve o conceito de enredo e produção de sambas de enredo trata-se de um processo, que, num primeiro momento, diz sim respeito a uma adequação do discurso do povo à cultura dominante e houve, inclusive, obrigatoriedade de temas nacionais, no que diz respeito à História Oficial.

Porém, no decorrer dos anos, essas temáticas e esses discursos sofreram mudanças, como enredos que tratam de temática afro, crítica e denúncia social, por exemplo.

Não é o foco deste trabalho analisar uma linha do tempo, e sim uma época específica, mas o entendimento desse processo nos mostra como o discurso literário está diretamente ligado à história e perspectiva social de quem produz esse discurso.

“Não temos nada contra a idéia de cultura popular, muito pelo contrário, até porque procuramos não subestimar os perigos de suas ambigüidades e impressões. Acreditamos, porém, que todo cientista social deveria ter em conta as afirmações de Martin-Barbero, segundo as quais a noção de alteridade no pensamento ocidental deve muito à percepção pelos românticos de que existia uma outra cultura. Afinal de contas, só se pode hoje falar em multiculturalismo e circularidade porque se reconhece que existem divisões, cisões e diferenças na produção cultural, que evidentemente refletem situações determinadas. Em suma, o termo cultura popular só tem sentido se admitirmos que os ‘de baixo’ não são totalmente governados pela ideologia dominante, porque também têm suas representações e valores próprios”. (FERNANDES, 2001, p.84)

Composição de samba de enredo e representação de identidade

Toda produção literária é reflexo de uma visão de mundo, de pensamento e identidade condicionados a um dado contexto. No caso das escolas de samba – o que interessa neste trabalho – as composições tendem a marcar o lugar de fala e a identidade de quem está representando um pavilhão. Como podemos identificar na maioria das letras, geralmente há um refrão – o qual “explode” e volta para a cabeça do samba – com versos que enaltecem a agremiação e seus símbolos, fazendo com que o componente cante com propriedade e garra.

Como objeto a ser analisado, foram escolhidos sambas da Mocidade Independente da década de 90, os quais seguem uma linha de abordagem dos enredos marcando a ideia de uma agremiação modernista e tropicalista, marca que teve sua gênese alguns anos antes, no carnaval de 1985, com o enredo vanguardista “Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas”.

Considerando o samba de 85, Marcelo de Mello afirma:

“Na verdade, a ousadia que explodiu em 1985 teve o seu embrião em 1980, com a chegada do carnavalesco [Fernando Pinto]. Não foi uma iniciativa solitária dos compositores. Mas eles foram importantes porta-vozes do que estava acontecendo. Manifestaram em forma de música a transformação visual. E isso não é pouco. Revoluções e marcos históricos tomam o cuidado de expressar suas mudanças em letras e hinos.” (DE MELLO. 2015, p. 178)

Podemos observar que a afirmação de identidade como escola modernista se deu por um processo que iniciou com a chegada de Fernando Pinto, mas que só se consolidou porque a escola aceitou e assimilou seu discurso. E as composições vêm posteriormente ratificar e registrar isso.

A partir desse pressuposto, serão analisados os enredos e as composições da década seguinte a fim de mostrar como as temáticas desenvolvidas pela agremiação reforçaram essa identidade e, principalmente, como esta é refletida no discurso dos sambas de enredo, os quais expressam algo além do que propõe o enredo, como uma forma de incluir neste a personalidade da agremiação.

Mocidade Independente de Padre Miguel e sua apoteose nos anos 90

A escolha dos anos 90 como recorte temporal para este trabalho, como citado no início dele, está ligada ao fato de ter sido um período apoteótico para a Mocidade Independente, em que chancelou seu lugar no carnaval carioca, sendo reconhecida como grande agremiação, na referida década em que teve três campeonatos e um vice-campeonato, além de participar do desfile das campeãs 9 vezes, ficando de fora apenas no ano de 1994.

Isso se deu por questões administrativas, fatores financeiros etc., mas sobretudo por inovações temáticas e plásticas, e também (o que tem mais valor aqui, considerando o foco desta pesquisa) pelos sambas de antológicos, e é sobre eles que iremos nos debruçar

A Mocidade Independente, através de seus sambas e, lógico, pelos respectivos enredos, curiosamente iniciou a década com o enredo sobre sua própria história: “Vira virou, a Mocidade chegou”, com o qual se consagrou campeã do carnaval carioca.

O samba de 1990 segue uma estrutura narrativa que, como o próprio enredo prevê, é apresentada em 1ª pessoa, personificando a escola – como se a Mocidade fosse a narradora – e inicia a epopeia com o seu símbolo maior, que é a estrela: “A luz,/Oh divina luz/Que me ilumina é uma estrela[…]”.

A primeira parte do samba diz respeito à apresentação e um breve histórico, como surgiu (“Comecei no futebol”) e o que a representa. Neste caso, a referência à sua famosa bateria, pioneira com as paradinhas, através da qual a escola é conhecida.

O primeiro refrão traz, com um poder de síntese, uma declaração que expressa muito bem o que é a Mocidade: independente – não só no nome, como também na sua identidade – e “raiz também”, pois toda escola de samba, enquanto organização social, tem base na ancestralidade e na tradição. Assim, a Mocidade assume saberes de diferentes gerações, une passado e futuro, preserva sua tradição e também segue inovando.

A segunda parte do samba é uma homenagem aos seus grandes carnavais, fazendo alusão ao “Descobrimento do Brasil”, “Como era verde o meu Xingu” e “Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas”.

O refrão principal sintetiza o enredo, que apresenta as viradas no tempo da Estrela Guia de Padre Miguel.

A luz,
Oh, divina luz
que me ilumina é uma estrela
Da aurora ao arrebol, arrebol
Eu em paz no verde da esperança
Tive sonhos de criança
Comecei no futebol
Agora, que me tornei realidade
Vou encontrar o meu futuro por aí
Curtindo a minha Mocidade
E a paradinha de outros carnavais
Sei que ninguém pode esquecer jamais

Sou independente, sou raiz também
Sou Padre Miguel, sou Vila Vintém

Apoteose ao samba, todo mundo aplaudiu
Com as bênçãos ao Divino aconteceu
O Descobrimento do Brasil
Quem não se lembra
Do lindo cantar do Uirapuru
Quando gorjeava, parecia que falava
Como era verde o meu Xingu
Meu ziriguidum fez brilhar no céu
A estrela-guia de Padre Miguel

Ah, vira virou, vira virou
A Mocidade chegou, chegou
Virando nas viradas dessa vida
Um elo, uma canção de amor

Em 1991, o samba que embalou o bicampeonato, com um dos desfiles mais impactantes e representativos da história da escola, também traz uma narrativa em 1ª pessoa. O enredo “Chuê chuá, as águas vão rolar” traz a água como elemento central, mas não a trata numa perspectiva histórica nem convencional.

A primeira estrofe traz uma proposição do enredo, entende-se que o sujeito lírico se viu inspirado pelo tema. A partir daí, ele mergulha no “verde e branco mar da Mocidade” e, então, apresenta o enredo propriamente dito.

Em seguida, o samba conta com dois refrãos no meio: o primeiro reverencia orixás ligados ao elemento água (Oxum, Iemanjá; águas de Oxalá) e o símbolo da escola, a estrela, que, no contexto da estrofe, pode ser entendida como elemento divino, algo que abençoa a escola (“uma estrela me clareia”); o segundo refrão pode ser entendido como o refrão principal, e traz a onomatopeia “chuê chuá”, presente no título, a qual se aproxima da oralidade e da linguagem popular, o que é, na maioria das vezes, o mais adequado nos refrãos, pois estes têm a função de dar a “explosão” no samba e faz com que componentes e público cantem mais intensamente, além do fato de o samba de enredo ser um gênero popular. Ainda que tenha a finalidade do desfile, é um cortejo carnavalesco, trata-se de uma festa, e a música fica para a posteridade.

Na sequência, na segunda parte do samba, a água (tema) personificada declara quais as formas e estados pode assumir e onde pode ser encontrada, encerrando a estrofe com seu poder regenerador (assim como o próprio carnaval): “Lavando as mentes poluídas/Taí o nosso carnaval”.

Há um último refrão curto, que retorna para a cabeça do samba. Nele, encontram-se a conclusão e a síntese de todo o enredo, o fato de que a água está presente em tudo. No referido refrão, ao dizer que “eu tô em todas” e, inclusive, na “liquidez do abacaxi”, além do poder de síntese, o samba expressa também a referência modernista.

Vale ressaltar aqui a característica da escola que conduziu a abordagem do enredo, pois, como foi citado mais acima, não segue uma perspectiva convencional.

Naveguei no afã de encontrar
Um jeito novo de fazer meu povo delirar
Uma overdose de alegria
Num dilúvio de felicidade
Iluminado mergulhei
No verde branco mar da Mocidade

Aieieu mamãe Oxum
Iemanjá mamãe sereia
Salve as águas de Oxalá
Uma estrela me clareia

É no Chuê, Chuê
É no Chuê, Chuá
Não quero nem saber
As águas vão rolar

É no Chuê, Chuê
É no Chuê, Chuá
Pois a tristeza já deixei pra lá!

Da vida sou a fonte de alegria
Sou chuva, cachoeira, rio e mar
Sou gota de orvalho, sou encanto
E qualquer sede posso saciar
Quem dera!
Um mar de rosas esta vida
Lavando as mentes poluídas
Taí o nosso carnaval!

Eu tô em todas, tô no ar, eu tô aí
Eu tô até na liquidez do abacaxi

Em 1992, a grande Estrela da Zona Oeste sonhou com o tricampeonato. Este não veio, mas o samba “Sonhar não custa nada ou quase nada” está entre os antológicos da escola, ficou para a posteridade e é cantado até hoje em blocos, bailes, quadras etc.

Apresenta temática abstrata e subjetiva, aproximando-se ao movimento artístico de vanguarda Surrealismo, que valorizava o mundo dos sonhos, das fantasias e da loucura, uma estética entre as quais influenciaram o movimento modernista.

O samba inicia com um narrador justificando seu delírio – afinal, “não custa nada” – que é possível e até real no carnaval, convidando o público a sonhar com ele (e com a Mocidade). Fica claro o poder transcendente e mágico do espetáculo que é o desfile, “onde tudo é mais bonito/neste mundo de ilusão”.

Segue o refrão principal com uma invocação ao símbolo da agremiação, a estrela, símbolo que representa, no contexto, a influência cósmica, a elevação. Durante todo o samba, o sujeito lírico segue induzindo o público a “embarcar” nessa viagem, nesse delírio, nesse momento de pleno prazer.

Sonhar não custa nada
E o meu sonho é tão real
Mergulhei nessa magia
Era tudo o que eu queria
Para esse carnaval
Deixe a sua mente vagar
Não custa nada sonhar
Viajar nos braços do infinito
Onde tudo é mais bonito
Nesse mundo de ilusão
Transformar o sonho em realidade
E sonhar com a mocidade
É sonhar com o pé no chão

Estrela de luz
Que me conduz
Estrela que me faz sonhar

Ai, amor
Amor, sonhe com os anjos
Não se paga pra sonhar
Eu sou a noite mais bela
Que encanta o teu sonho
Te alucina por te amar
Vem nas estrelas do céu
Vem na Lua-de-mel
Vem me querer

Delírio sensual
Arco-íris de prazer
Amor, eu vou te anoitecer

Eu vejo a Lua no céu
A Mocidade sorrir
De verde e branco na Sapucaí

O enredo de 1993, “Marraio Feridô sou rei”, fala sobre jogos e brincadeiras. No samba, há narrativa em 3ª pessoa, em que, na primeira estrofe, traz uma referência histórica desses jogos e competições. Já o refrão, em 1ª pessoa, aproxima a escola ao enredo.

A última parte do samba, antes do refrão principal, apresenta a conclusão do enredo, fazendo uma comparação com a vida, trazendo a máxima de que “perdendo ou ganhando” deve-se jogar, ora sendo estratégico, ora sabendo usar de suas habilidades e também contar com a sorte, sempre em busca da felicidade. Nota-se uma visão otimista, a finalidade da festa/do carnaval.

O refrão principal traz repetição de palavras (“rola bola, bola rola”), rimas (joguei-rei) – o que facilita o canto -, além de expressões populares, o que dialoga com o público. a saber: “carambolar” que, no jogo de bilhar, significa atingir duas bolas em uma só jogada e também pode significar trapacear; e em jogos de bola de gude, “marraio feridô sou rei” é a expressão falada pelos meninos para indicar a ordem dos jogadores.

Vai começar
A mocidade acende a chama da emoção
Lembrando a Grécia onde o jogo se tronou
Uma forma de competição
Iluminada pelos deuses
A Mocidade vem jogar no carnaval
A sorte da estrela que nos guia
No pano verde dessa minha fantasia

Já joguei muito com a vida
Já rodei muito peão (peão)
A sorte pode vir parar na minha mão

Vem me seduzir
Com seu jogo de olhar
É um jogo de prazer
Sem medo de perder
O gosto de arriscar

A vida é como um jogo de xadrez
Desde o começo da humanidade
Aqui, se nasce jogando
Perdendo ou ganhando
Em busca da felicidade

Rola bola, bola rola
Na vida sempre joguei
Se carambolar eu ganho
Feridô marraio sou rei

No carnaval de 1994, a escola desfilou com o enredo “Avenida Brasil – tudo passa, quem não viu?”, trazendo como enfoque o cotidiano épico, o ambiente urbano, o dia a dia da população carioca.

O samba se estrutura em uma narrativa em 1ª pessoa. A primeira parte com linguagem informal, expressões corriqueiras (“de lá pra cá, daqui pra lá”); versos curtos, próprios da oralidade (influência ibérica/redondilhas), que facilitam o canto, recursos muito presentes na estética modernista.

A Avenida Brasil é representada como símbolo e lugar de interseção, de mistura (“uma confusão de coisas”); alusão à Linha Vermelha, a qual se liga à Av. Brasil.

Encontra-se, no primeiro refrão, a expressão “ziguezagueando”, própria da linguagem informal e da finalidade do samba enquanto gênero popular. Na sequência, tem-se a declaração “eu vou/outra vez com a Mocidade”. Aqui, a Mocidade aparece como fio condutor, e ratifica- “outra vez” – a tendência da escola de fugir do convencional e buscar nas frestas a inspiração para seus carnavais.

A segunda parte do samba ratifica a ideia de mistura, citando exemplos que evidenciam os contrastes sociais da cidade, o que pode ser entendido com tom de crítica (“do importado à carroça”). Em seguida, uma visão poética e otimista, comum da linguagem carnavalesca (“Sou passageiro da alegria/O meu destino é o prazer”). A estrofe encerra com a síntese: “Passo por ela todo dia/E hoje ela passa por você”, pois o carnaval permite que ela passe na avenida mais importante para os sambistas, a mais expressiva da cidade: a Marquês de Sapucaí.

O refrão principal convida o público para “pegar carona” no corso da escola, para participar dessa viagem (“vem cantar e sambar com a mocidade…”).

De lá pra cá, daqui pra lá
eu vou (ah, como vou)
Com meu amor, vou viajando
nessa Avenida
Pela faixa seletiva
no sufoco dessa vida
Tudo passa, quem não viu?
uma confusão de coisas
Assim é a Avenida Brasil
Linha Vermelha vem cortando a Maré
É a bailarina da cidade

Ziguezagueando eu vou
Outra vez com a Mocidade

Do importado à carroça
o contraste social
Nesse rio de asfalto
o dinheiro fala alto
é a filosofia nacional (eu sou)
Sou passageiro da alegria
O meu destino é o prazer
Passo por ela todo dia
E hoje ela passa por você

Vem cantar e sambar
com a Mocidade
De carona com a estrela
rasgando o coração dessa cidade

No ano de 1995, a Mocidade Independente apresentou um enredo sobre a fé do povo brasileiro. O samba, que nos interessa neste trabalho, tem estrutura de gênero épico, narrativa em 3ª pessoa, seguindo ordem cronológica numa perspectiva eurocêntrica para contar a história do Brasil e de suas manifestações religiosas.

Na primeira estrofe, há referências, respectivamente, às crenças dos colonizadores portugueses, dos nativos da terra e dos negros africanos escravizados. Encerra-se a estrofe com a ideia de sincretismo religioso.

O refrão do meio cita ritos e festejos populares de diferentes lugares do Brasil, que são resultado da mistura cultural e do sincretismo entre religiosidades, muitas vezes unindo sagrado e profano, como por exemplo, o reisado, a lavagem do Bonfim, a cavalhada, Padre Cícero… Tais manifestações estão diretamente ligadas à tradição popular.

A segunda parte do samba segue a linha modernista, trazendo a mídia e inclui crítica ao refletir sobre o poder persuasivo desta e sobre um possível futuro. Encerra com a personificação da Mocidade enquanto devota que clama por proteção, introduzindo o refrão principal.

O refrão principal traz um vocativo, usando de forma poética o nome do bairro em que se encontra a agremiação/ trocadilho com nome “padre”, que é um sacerdote e líder religioso. O “padre” da Mocidade é simbólico e representa a fé na própria escola, na própria agremiação. A sua identidade é evidenciada pelos sambistas e pelos componentes, que representam o povo, a gente sofrida, que contam com ajuda divina e têm na fé o último (e, muitas vezes, único) recurso.

Bravos navegantes portugueses
Encontraram o eldorado tropical, nosso chão
Rezaram a primeira missa,
abrindo as portas pra religião
mas o dono da terra, Índio Tupi
se admirou, sem nada entender
confundiram o seu credo natural
suas lendas e seu jeito de viver
Vieram os negros africanos
com seus tambores, orixás
e suas manifestações
Quantos imigrantes te abraçaram, mãe gentil
trazendo novas crenças pro Brasil
Aí, no meu país em louvação
sagrou-se a mistificação
com tantas preces e a miscigenação

Com a bandeira do Divino
com o reisado me encantei
na Lavagem do Bonfim,
na Cavalhada delirei
Padre Cícero e os romeiros,
quanta emoção
a fé se espalhando no sertão

É maravilhosa, é fascinante, é sedução
a mídia anunciando
e provocando tentação
o paraíso do futuro é aqui
com a nova era que virá
e hoje a Mocidade,
devota de paixão
te canta assim,
em forma de oração

Padre Miguel, Padre Miguel
Olhai por nós, olhai por nós
Se liga nessa gente tão sofrida, meu senhor
Tá sempre aguardando a sua voz

O último campeonato da agremiação na década, em 1996, teve como enredo “Criador e Criatura”, em um desfile marcante. Em relação ao samba de enredo, a primeira parte apresenta narrativa em 3ª pessoa, um texto épico que narra a criação do mundo segundo a tradição cristã, quando o primeiro personagem (o criador) é motivado pelo amor, criando o mundo, a natureza e, por fim, como a mais especial (“e numa luminosa inspiração”), o homem (a criatura, que é o segundo personagem da narrativa). Essa criatura, seguindo a narrativa cristã, desobedece (“avança o sinal”) e, imitando O Criador, passa também a criar.

O primeiro refrão faz alusão ao conceito bíblico de que o homem foi feito “à imagem e semelhança” de Deus (“eu sou o espelho, sou o próprio criador”). A segunda parte do samba traz exemplos de homens que criaram e mudaram o rumo da história: “Gênios, artistas e inventores/Fazem um mundo diferente/Mexem com a vida da gente”. Encerra-se a estrofe com a ideia de um futuro incerto, em que “a gente não sabe o que nos espera”, mas convidando para encararmos de modo leve e otimista, como o carnaval propõe: “vem nessa, amor/pra um novo dia/brincar no paraíso da folia”.

O refrão principal traz, com um poder de síntese, a mensagem do enredo, pois a criatura (o homem) é capaz de fazer guerra, trazer destruição ao mundo, porém é também capaz de fazer festa, produzir cultura e resistir (“a mão que faz a bomba faz o samba”), encerrando com uma “bomba” do sentido conotativo, uma bomba metafórica, com a qual a “explosão” diz respeito ao efeito causado pela grandiosidade do espetáculo da escola na avenida (“a bomba que explode nesse carnaval/é a Mocidade levantando o seu astral”).

Cheio de amor
O Criador
Findou sua divina solidão
Fez surgir a natureza
Universo de fascinação
Luz, terra e mar
No firmamento astros a bailar
E numa luminosa inspiração
Faz o homem a mais sublime criação

Assim, o homem com sua ousadia
Avança o sinal no jardim do amor
Deu um salto, dominou a terra
Terra de Nosso Senhor

Olha pra mim, diga quem sou
Eu sou o espelho, sou o próprio Criador

Gênios, artistas e inventores
Fazem um mundo diferente
Mexem com a vida da gente
Dando asas à imaginação
Em uma nova era
A gente não sabe o que nos espera
Vem nessa, amor, pra um novo dia
Brincar no paraíso da folia

A mão que faz a bomba, faz o samba
Deus faz gente bamba
A bomba que explode o nesse carnaval
É a Mocidade levantando o seu astral

Em 1997, a escola de Padre Miguel foi em busca do bicampeonato com o enredo “De corpo e alma na avenida”. O samba traz uma narrativa em 1ª pessoa, uma “odisseia” pelo interior do corpo humano.

É usada a expressão corriqueira “de corpo e alma”, presente no título do enredo, para mostrar o envolvimento do narrador com a escola, a qual tem o poder de mexer com ele (e com o público) a ponto de sentir tais estímulos fisicamente, como vemos nos versos: “Sou alegria, arrepiando esta cidade/Dos pés à cabeça/Marcando forte, vai meu coração”; além de trazer o coração como o “palco da paixão”, simbolizando a emoção de desfilar.

O primeiro refrão faz referência aos cinco sentidos: “me beija”, “vem me abraçar”, “tem cheiro”, “ouvindo”, “vejo”.

Em seguida, a segunda parte do samba, com o poder de síntese já citado em outros sambas, resume o enredo, trazendo a ideia de uma máquina viva que tem ciclos e um funcionamento perfeito.

O refrão principal traz a proposição do enredo, indicando que a “viagem” será do lado avesso (do corpo), em versos curtos, redondilhas menores, facilitando o canto.

Eu vou, eu vou, amor!
Eu vou nessa viagem
De corpo e alma com a Mocidade
Semeando amor, espanto a dor
Sou alegria, arrepiando esta cidade
Dos pés à cabeça
Marcando forte, vai meu coração
Porque o coração é o grande palco da paixão,
É onde aperta a saudade
E pulsa forte a emoção

Me beija na boca
Vem me abraçar
Tem cheiro de amor no ar
Ouvindo teu canto ecoar
Nos teus olhos vejo
Minha estrela brilhar

Máquina da vida
Mão abençoada foi quem criou
Nasce, cresce, envelhece
A mente comanda, o corpo obedece
És célula viva! Corre na veia da gente
Luz que brilha no ventre
Raiz dos seus descendentes
Senhor que criou nesse mundo a matriz
Faz esse povo feliz

Saúde e harmonia
Prazer de viver
Vou virar pelo avesso
Teu avesso eu quero ver

O enredo de 1998 tem ligação direta com o símbolo da escola, que é uma estrela. O samba parte de um elemento comum à escola/à comunidade para narrar sobre a influência dos astros. Ele inicia com o refrão principal, com versos curtos, o que dá força ao canto, trazendo uma imagem poética de uma crença popular, com a qual o narrador faz um pedido à estrela para que a escola faça um bom carnaval.

Na sequência, na segunda estrofe, o narrador declara ser guiado pelos astros. O segundo refrão traz, numa sequência de rimas que pode sugerir o balanço das águas, a referência de que astros, muitas vezes, orientavam navegantes a desbravar mares.

A última parte do samba faz referência a civilizações e crenças que têm na observação dos astros seus saberes.

Uma luz riscou
O espaço sideral
fiz um pedido
Pra brilhar no carnaval

O céu vai me guiar
O brilho das estrelas vai iluminar
(Sou da Mocidade)
Essa noite a magia
Cai do céu e a poesia
Vem da estrela que me faz sonhar, sonhar
Nesse universo de mistérios
um livro aberto, cheio de fascinação
vejo nos astros
minha luz na escuridão

Amor vou te levar
nesse mar de alegria
Iluminado
vou na paz da estrela guia

(mas reluz)
Reluz no mapa celeste
a sorte e o destino dos grandes impérios
Deixe o sonho te levar, levar
pro futuro que virá
Entre heróis, mitos animais
Cruzeiro do Sul, não me perco jamais
Se o mundo gira, o sol se põe
A lua vem e anuncia
Uma chuva de estrelas
Vai cair nessa folia

Em 1999, a Mocidade Independente encerrou a década com um desfile apoteótico, do qual muitos torcedores se recordam com certo saudosismo. O enredo “Villa-Lobos e a Apoteose brasileira” foi embalado por um samba épico, narrado em 3ª pessoa, que traz o personagem central de forma exaltada.

A primeira estrofe do samba apresenta Villa-Lobos através de seus feitos, do seu protagonismo e um certo pioneirismo ao valorizar a cultura brasileira. Vale ressaltar aqui a ligação direta com o movimento modernista, o que corrobora o perfil da escola exposto neste trabalho.

O primeiro refrão cita algumas obras do artista, e a estrofe seguinte narra a influência da fauna e da flora brasileiras nas obras de Villa-Lobos, a ideia de uma arte genuinamente brasileira e a valorização da cultura popular, encerrando com a imagem poética do maestro regendo a maior orquestra brasileira, que é um desfile de escola de samba. O refrão principal sintetiza o enredo ao declarar o maestro como prova de brasilidade, de quem a obra é cantada pela Mocidade.

Rompeu barreiras, atravessou fronteiras
Para sua música despontar
Esse gênio brasileiro
Conquistou o mundo inteiro
Fez nosso país se orgulhar
palmilhando os quatro cantos do gigante
De folclore fascinante
fonte de belezas naturais
Criou grandes temas musicais

Papagaio do moleque
enfeitando o céu azul
O uirapuru, a encantar de norte a sul
as bachianas, quanta emoção
É lindo o chorinho, rasga o coração

Deixou cantar
em sua música
a fauna, a flora, rio e mar
No concerto da floresta ao luar
canta o pajé, dança o mandu çarará
Refletindo a poesia
mistérios e magias da cultura popular
Criança Esperança
vem pra folia cirandar
e hoje a batuta do maestro
Rege a sinfonia dessa arte milenar

Villa Lobos, é prova de brasilidade
Sua obra altaneira
Vem na voz da Mocidade
Cantando a apoteose brasileira

LEGADO DOS TROVADORES DE PADRE MIGUEL: SOBRE O ATO DE COMPOR

Para aproximar a perspectiva deste estudo com quem de fato produz o gênero samba de enredo, foi feita uma entrevista (em fevereiro de 2021) com o Richard Valença, 28 anos, compositor mais jovem da agremiação. Seguem as perguntas e respostas mais relevantes acerca do que foi abordado nesta pesquisa:

– O que você entende como poesia?

– “Poesia é um dos fatores, vamos dizer assim, que influenciam diretamente a música. Na verdade, que constrói diretamente a música… a música, quando eu falo, entende-se como como samba de enredo, que nada mais é do que encontro de um verso escrito com a poesia, é a parte que eu considero o dom, o verso escrito criado da maneira que eu coloque a essência de enredo, alguma sacada que eu tenha dentro do tema… a poesia é a parte do dom, a parte do tirar a ideia da casinha. Então, o samba para mim é o verso namorando a poesia, né? Isso é o dom.”

– Como é o processo de composição?

– “[…]vou falar processo de composição, que, apesar de parecer robótico e regrado em todas as escolas, aquela coisa de você recebe a sinopse… que você tem o tema… você faz uma música sobre o tema… sobre o processo de composição, para mim não funciona tão facilmente, simplesmente chegar no texto, colocar música nesse texto… não há criação igual. Eu já falei também anteriormente… é o namoro dessas duas coisas; eu consigo compor criando a melodia já com a letra, se é que entende… saindo a ideia da cabeça, mesmo que faz o papel escrito, ela já vem com a ideia…, e a grosso modo, de composição para uma parceria dos compositores essa parte […] nós sabemos o tema, nos reunimos com a parceria que em algum momento do processo a gente montou, tanto com investidores quanto com pessoas que compõem diretamente a música… Outras pessoas vêm ajudar em outras coisas, com torcida, fazer patrocínio… Enfim, tem muito disso, […]. A escola divulga o tema, depois divulga uma sinopse, e em cima desse tema que é de onde a gente tem o texto base para fazer a música mesmo. E aí a gente tira isso para fazer a parte criativa, que é a música… claro que não enxugando tudo que é o texto, mas pegando as referências dali… e ultimamente a gente tem o histórico de ‘fugir’ da sinopse, que é ler aquela sinopse por inteiro e não falar diretamente do que está falando. Acho que é uma linha natural que o carnaval tá seguindo… os compositores de samba enredo[…]”

– O que o inspira?

– “Me inspira compor a natureza de conseguir traduzir uma história, um tema, um enredo, em música… fazer esse encontro que falei anteriormente do verso com a poesia… colocar isso em forma de música, saber que eu vou estar ajudando não só uma escola, mas a mim que que tenho isso como… eu considero como dom, compor, e tenho isso com hobby, como paixão, como cachaça mesmo, como vício… isso me inspira compor me inspira.

já falando agora da parte de você, não abre esse dinheiro textos e dos que sejam fora da casinha não sente não escreveu uma história reta falar da história em detalhes que antes não passaram e que são necessários serem ditos textos atuais trazer algo antigo para atualidade de alguma maneira mesmo que seja contando o antigo o amor pelo carnaval me explicou eu acho que tem que colocar isso em toda música, que crio.”

– Quantos sambas você já compôs para a Mocidade? Quantos foram para a avenida?

– “Na Mocidade Independente de Padre Miguel, que é minha escola do coração, eu escrevo samba desde 2017. Tenho três finais, uma semifinal… tenho um título… o samba enredo da Mocidade de 2019 é meu… […] eu tô lutando muito para que 2022 seja meu também. Sou muito feliz de ser o compositor mais novo da Mocidade Independente de Padre Miguel. Esse título é meu faz um ano e, ao que parece, até infelizmente, né… […]”

– Como costuma ser o padrão métrico/versificação dos sambas de enredo em geral?

– “O grande público entende como aquela estrutura de samba: de primeira do samba, refrão do meio… Segunda do samba, refrão principal… […] Para a gente, no nosso linguajar, são as quebras melódicas, as divisões melódicas de cada linha, de cada momento da música… e a gente busca aqui que a melodia seja gostosa aos ouvidos […] Aí que é o nosso termômetro, se vai ganhar uma disputa ou não. É o público e as pessoas envolvidas na escola… Vai de cada parceria. Vai de cada momento, eu tenho costume de fugir da métrica convencional quando estou compondo, mas é aquela velha máxima: o antigo arroz com feijão também é muito gostoso, é muito bom, entendeu?”

– Qual a importância do Toco na história dos sambas da Mocidade? Qual a influência dele enquanto você compõe, e quem mais o influencia?

– “O toco é a referência maior da Mocidade, para a ala de compositores, é o grande campeão da escola. Vem se aproximando o Jefinho, já tem um tempo… que é o segundo maior campeão, junto com o Dico da Viola. Mas o toco… não só por isso… sei de histórias do Toco que são verídicas… de pessoas que viviam com ele, que faziam samba com ele… que são extraordinárias. O Toco é um cara que já fez um samba na madrugada e entregou no dia seguinte… Parou num bar, olhou para o céu… tô mencionando essa história porque acho uma das mais bonitas, quando escreveu Mãe Menininha, entendeu? “Já raiou o dia” … é mais ou menos isso aí… Enfim, é o cara que mais saiu da casinha na história da Mocidade. Se tem um cara que foi referência no mundo do samba e para minha escola, não tenho dúvida nenhuma… O toco é uma das figuras mais importantes da Mocidade e para os compositores da Mocidade, tanto como influência quanto como figura para admirar mesmo, por ser independente.”

– Quem mais o influencia?

– “Nossa, eu tenho tantos compositores que me influenciam… a gente tem as referências, hoje em dia, dos caras estão sempre ganhando: Cláudio Russo, Lequinho… O André Diniz… e do André eu falo em especial porque eu sou muito fã. Talvez a fase dele muito campeã tenha passado um tempo, mas é o cara que eu escuto samba e me identifico ali… O Cláudio também é um cara que eu tenho muito disso… Enfim, são esses caras que moldaram a nossa forma de compor recentemente. Dos mais antigos, eu puxo para o seu Davi Correia… aí eu falo de Silas… Recentemente, eu tive a honra de compor com Aluísio Machado… Tem tanta gente que influencia a nossa cabeça… […]”

– Para você, o que é ser independente?

– “Ser independente… é ser independente mesmo… Mocidade é uma escola que veio junto com a Beija-flor para atazanar as quatro grandes… Desde o princípio, é uma escola que, quando botou o pé no primeiro grupo, não saiu mais… É uma escola que tem na torcida já aquela forma de encrenqueira, briguenta, que ama a escola, que defende… O independente é independente de verdade. Ama a Mocidade só aquilo importa, e eu não sou diferente. Eu amo as outras escolas, mas tenho muito isso do independente, a gente costuma dizer que é a torcida mais chata, né… hoje em dia mais na internet… mas não é chatice… O independente é brigão, ele brigou tanto tempo por estar em situação ruim, que hoje, vivendo uma situação melhor, ele quer brigar do mesmo jeito, mas de maneira positiva. […] é uma mistura de orgulho e vontade de dizer: eu sou Mocidade…”

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA LITERATURA À POESIA DE PADRE MIGUEL

As palavras de Richard nos trazem a dimensão do quão complexo e rico é o processo de organização de um samba enredo, e nos fazem refletir sobre quais aspectos o influenciam.

Alguns pontos merecem nossa atenção e ratificam alguns conceitos que foram abordados no decorrer do trabalho. Como, por exemplo, na tentativa de explicar o que ele entende como poesia, sempre se expressava de maneira vaga, entendendo como algo além da narrativa proposta pelo enredo, ligado à subjetividade; trazendo também a noção de verso, que está diretamente ligada à oralidade.

Podemos perceber que a feitura de um samba de enredo não segue necessariamente um padrão, mas que também há uma estrutura pré-definida para atender à finalidade da obra, que precisa seguir a sinopse sugerida pela escola, e considerar que se trata de um concurso. Mas há também o estilo próprio de cada compositor ou parceria.

Por fim, é interessante perceber como compositores o influenciam na escrita, assim como a aproximação com a escola, o afeto e a ideia de pertencimento. Seguindo essa reflexão, cabe aqui citar o referido samba campeão do entrevistado Richard Valença, com o qual a Mocidade Independente foi para avenida no carnaval de 2019, com o enredo “Eu sou o tempo, tempo é vida”.

O “menino tempo”, como é conhecido é um bom exemplo para refletirmos sobre isso, pois a letra não se prende à narrativa proposta pelo enredo, o que, consequentemente, não rendeu à escola nota máxima no quesito. Porém traz um recurso poético, como se o sujeito lírico “voltasse ao tempo” para se debruçar sobre a história da própria Mocidade, seus símbolos e homenagear os sambistas que marcaram sua história, com um “toco de verso”, declarando: “quem me dera o ponteiro voltar/E reencontrar os mestres na avenida”.

Foi o samba escolhido pela maioria da comunidade e dos torcedores, foi para a avenida porque a escola precisava se encontrar novamente, se ver retratada no samba que iria cantar.

Canto,
Faço do samba a minha prece
Sinto que a musa me aquece
Com o manto da inspiração
Ao transportar-me pelas asas da poesia
Ao som de lindas melodias
Que vão fundo no meu coração
Então componho um poema singular
Rememorando obras célicas
Do cancioneiro popular

Oh, divina música
Tua magia nos envolve a alma
Tua sutileza nos seduz
Pois emanas a luz
Que inebria e acalma
Tu és a linguagem dos cantores
Tuas entonações
Nos inspiram amores

Música,
Nos traz saudades coloridas
De trovadores em serestas
E das canções sentidas

A letra acima foi assinada pelo saudoso Toco, o qual foi citado na entrevista e também no samba do entrevistado, e está sendo tratado aqui com a importância que merece.

“Rapsódia de saudade” é um samba de 1971, não pertence à década analisada nesta pesquisa, porém sintetiza a essência do que afirmamos aqui como sendo produção literária. Esse belíssimo samba metalinguístico ratifica a ideia de Literatura musicada e de linguagem poética que buscamos evidenciar.

E é também um modo de ligar passado e futuro, nas “viradas” do tempo, e homenagear todos os poetas e compositores de sambas de enredo, sobretudo os da Mocidade, escola que é “independente”, mas que é “raiz também”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Martins Fontes: São Paulo, 2003.

FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro: Memória Carioca, 2001.

MELLO, Marcelo de. O enredo do meu samba: a história de quinze sambas-enredo imortais. Rio de Janeiro: Record, 2015.

MUSSA, Alberto e SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

NEIVA, Alexandre. Literatura dá samba. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/tomo_3/2817-2824.pdf

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O feriado pelo dia de São Jorge será de celebração na quadra do Paraíso do Tuiuti. Na próxima terça-feira, 23, a partir das 14h,...