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Dia da Consciência Negra: escolas de samba do Rio caminham para reaproximação com a origem e o espaço em que vivem

Dos enredos já anunciados para o próximo carnaval, com exceção de Mangueira que ainda não definiu, Viradouro, Tuiuti, Tijuca e Imperatriz, todos os demais possuem temática afrocentrada

Não existe no mundo forma mais democrática de conciliação entre os povos, classes, religiões e orientações sexuais do que o carnaval. Quatro dias de folia são capazes de unir a Zona Sul ao subúrbio carioca das mais diversas formas. Porém, basta chegar a segunda-feira pós folia que voltamos a ver a realidade do Rio de Janeiro que nos foi embaçada outrora pela festa. Apenas em 2019, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do RJ (ISP-RJ), 78% dos mortos em ações policiais eram pretos e pardos. Um dado que assusta, incomoda e liga um alerta para qualquer pessoa que queira pensar num estado democrático de direito.

O professor Silvio de Almeida, autor do livro Racismo Estrutural, que explica com detalhes como pretos vivem num sistema criado para que eles não existam, apenas sobrevivam, afirmou em uma de suas entrevistas que “não se pode falar em democracia sem falar da questão racial”. E, ao que parece, as entidades carnavalescas cariocas entenderam que o assunto está em voga. Dos enredos já anunciados para o próximo carnaval, com exceção de Mangueira que ainda não definiu, Viradouro, Tuiuti, Tijuca e Imperatriz, todos os demais possuem temática afrocentrada. Seja homenageando seu mais ilustre torcedor, Martinho, na Vila Isabel, ou a homenagem aos deuses negros, como é o caso de Grande Rio e Mocidade, com Exu e Oxóssi respectivamente. Com a intenção de promover o debate a respeito do assunto no Dia da Consciência Negra, o site CARNAVALESCO ouviu alguns personagens do carnaval que fizeram parte da construção desses temas.

Para Helena Theodoro, autora e curadora do enredo do Salgueiro 2021, é necessário entender antes de tudo o processo de invasão em terra Brasilis e como foi a construção do que entendemos hoje como país.

“Para exemplificar, vamos citar os EUA. Houve um projeto de nação muito diferente do Brasil desde sua fundação. Quando os fundadores dos EUA pra lá foram, tinham o propósito de criar um território para eles. Onde houvesse igualdade de oportunidades, sem a supremacia de um grupo que se dizia nobre e outro não. Eles saíram da Inglaterra para criar uma nova Inglaterra, dentro de valores e padrões diversos da que existia em seu lugar de origem. Criaram então o sonho de um espaço de liberdade onde não haveria por exemplo uma diferença de castas, e nenhum preconceito. Essa proposta vai fazer com que se valorizasse muito o espaço e território. Porque foram para lá construir algo, criar uma nação onde todos pudessem efetivamente viver e conviver. Já o Brasil, parte de uma outra premissa. Quando o português chega em terra brasilis vem com o objetivo de extrair e enriquecer. Nunca de fazer um novo Portugal. O Brasil construiu um projeto de nação excludente para negros e índios. Construiu inclusive uma mentalidade que começou no início do século XVI, quando pessoas de pele clara, através da guerra, dominaram as pessoas de pele escura ou amarela, e criaram um biopoder no sentido de dizer que já que são vencedores, eram melhores que os demais”, explicou.

Para Helena Theodoro, o debate sobre negritude no carnaval demonstra a valorização do verdadeiro dono da festa e da escola de samba.

“O convite para completar a vontade do Salgueiro de falar sobre resistência negra vem exatamente do estudo que eu e outros intelectuais negros fazemos da forma de resistência do movimento e da comunidade negra. como um todo. Para mostrar que a gente nunca aceitou a maneira de ser, viver e pensar que nos foi imposta pela comunidade europeia. E que esses elementos que para cá vieram sempre buscaram preservar seus valores e maneira de ser. O que as escolas de samba basicamente estão fazendo, e acrescento Salgueiro nisso, foi dar visibilidade ao povo negro que sempre esteve invisível. Uma escola de samba parte do principio de família extensiva, onde cantam e contam sua maneira de viver. É um terreiro na marques de Sapucaí com a família salgueirense, portelense e por aí vai. Tem uma implicação de responsabilidade de cada um com o coletivo, representando o território em que vivem e louvam a determinado Orixá. Esses são as forças da natureza que caracterizam aquela própria natureza. Quando Salgueiro se veste de vermelho e branco, representa o dono da pedreira que é o Morro do Salgueiro, Xangô. Sua bateria furiosa toca o alujá do rei da cidade de Oyo. A inteligência da comunidade negra faz com que mesmo dentro de uma aparência dos valores europeus, você está louvando Orixás, mantendo-os em pensamento, cuidando do seu território a sua maneira própria de viver”.

Nos últimos anos a dupla Gabriel Haddad e Leonardo Bora exaltou na Sapucaí pessoas pretas e suas representatividades. Ao lado da dupla, sempre esteve o antropólogo e enredista Vinicius Natal, que colaborou na construção dos enredos. Para ele, é preciso entender que mesmo com alguns enredos que talvez se afastem de sua origem, mas ainda assim são manifestações negras.

“Primeiro a gente precisa compreender a escola de samba como um organismo plural. Ela pode ser várias coisas ao mesmo tempo. A minha visão de escola pode ser de que escolas podem e devem estar ligada a sociabilidades negras, dos morros e favelas, a produção musical, sua afirmação de identidade negra na cidade. Já para outras pessoas pode estar vinculada a uma visão comercial e empresarial. Gosto de pensar sempre como organismos e instituições negras, produtos da diáspora africana onde seus fundadores foram filhos e netos de negros escravizados. Então, beber nessa fonte e entender escola como esse organismo é fundamental para entender que ela tem influencia de diversas outras manifestações e festas. Acima de tudo é uma manifestação afrobrasileira, porque em suma maioria foi criada por sujeitos frutos, filhos e netos da abolição jurídica da escravidão negro-brasileira”.

Natal também afirma que o diálogo com pautas atuais sempre foram prioridades nas escolas de samba. Sejam essas pautas de direita ou esquerda no campo político.

“Acho que as escolas sempre negociaram com o tempo presente. Se precisasse falar de Vargas e exaltar o nacionalismo, muitas escolas fariam e outras talvez não. Caso fosse necessário se associar ao partido comunista, muitas também flertariam. Se fosse pra cantar abertura política, várias cantariam. Elas sempre negociam com o tempo. É fundamental para entender esse período que estamos cada vez mais debatendo a questão racial, é fruto de muita luta dos movimentos negros desde o século XIX até hoje. Negros como Abdias do Nascimento tem seus pensamentos refletidos até hoje no mundo inteiro. Também é necessário entender que as escolas são fruto da diáspora negra africana. Assim, elas não precisam necessariamente falar de um enredo de cultura negra para serem manifestações da cultura negro popular. O que quero dizer é que elas não precisam se afirmar somente pela narrativa de carnaval. Ser escola de samba já é um reflexo ancestral. Claro que acho muito positivo esses temas serem debatido e torço que mais e mais as temáticas cantadas na avenida venham junto de uma ação prática de dentro das escolas para combater o racismo que está dentro delas mesmas. Não podemos esquecer e muito menos romantizar que diversas escolas estão isoladas do mundo social e ainda são machistas, homofóbicas e também racistas dentro de sua estrutura. Além dos enredos as agremiações têm que assumir uma missão prática para combater o racismo na sociedade visto que elas são formadas no seio de comunidades afro brasileiras e representam majoritariamente essas comunidades”, concluiu o antropólogo.

André Rodrigues, integrante do departamento de criação da Beija-Flor, considera o momento importante para a história da festa, mas também exalta a contribuição diária das escolas para além do carnaval.

“Eu parto do princípio de que o Brasil não acordou só agora. A luta antirracista, pela sobrevivência da população preta, não só das pessoas mas também de seus pensamentos feitos e contribuição é diária. O movimento está acontecendo desde sempre. Tem o movimento negro, movimento das mulheres pretas, das feministas pretas. Um povo que luta todo dia contra o racismo. Essa ideia que a branquitude afirma que a gente nunca vai pra rua, é bem simples de quebrar. Quando vamos pra rua levamos tiro. Essa infelizmente é a grande verdade. Muitas pessoas só enxergaram a luta antirracista agora porque viram o movimento lá de fora e quiseram colocar aqui de uma maneira mais bacana de se debater. Escola de samba é e sempre será eternamente um grande instrumento disso. Muita gente esquece que é um movimento preto, com cultura de preto. Totalmente nosso e que ninguém faz igual. Até quando a escola negocia seu espaço e voz para falar de outras coisas, como os enredos CEP, ainda sim está sendo um mecanismo de levar o corpo preto de suas comunidades para visitar outros lugares”.

O artista finaliza dizendo que enredos com temáticas afro diaspóricas são uma forma de reaproximação das escolas com seu próprio lugar e origem de nascimento.

“Acredito que o movimento das escolas estarem voltadas para enredos mais afros, como é e sempre foi o caso da Beija-Flor, é um meio de busca pela reaproximação com a origem. Faz com que as escolas olhem para dentro delas mesmas, num movimento de procurar falar mais sobre isso e entender do espaço que vivem. As agremiações voltaram a ver que com essas pautas mais progressistas, são uma forma de dialogar com seu público antes, durante e depois do carnaval. Essas escolhas de enredo se devem a esse fato. Sabem que o diálogo será melhor com sua comunidade e também com a sociedade. A partir disso, o desempenho na Sapucaí é muito melhor, obviamente”, finalizou André.

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