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‘Kabecilé, meu padroeiro. Traz a vitória pro meu Salgueiro!’: análise sobre o lado de lá e o de cá

O mês de Junho traz com ele as tradições juninas pegam fogo. As festas dedicadas a São João trazem quitutes, brincadeiras, danças e, é claro, a fogueira. É no rio Jordão que São João Batista aparece nas passagens bíblicas das tradições católicas. Um santo no rio. Um rio de águas. Afinal, de onde vem o fogo de São João?

De acordo com os processos de transculturação ocorridos em território brasileiro, percebem-se diversas confluências não uniformes na construção e manutenção do imaginário popular. O sincretismo religioso é um dado possível de análise ao pensar como esses elementos se sobrepõem em projeções dialógicas. O fogo de São João surge aqui pelos encontros com Xangô. A cantora Juçara Marçal entoa “São João Batista, Xangô. Ele é dono do meu destino até o fim. Se eu perder a fé no meu senhor, ele roda a pedreira por cima de mim.”

No ano de 2019 o G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro trouxe à Marquês de Sapucaí seus Xangôs. Gabaritando o quesito enredo, a escola da Tijuca decidiu construir uma narrativa que ao mesmo tempo falava de lá – as tradições dos povos yorubanos – e de cá – a história da agremiação. O enredo dividido em cinco setores de coesão fluida grifou o orgulho do salgueirense ao homenagear o padroeiro da escola. Já na justificativa do enredo é possível encontrar os pilares de sustentação dessas influências yorubanas na comunidade salgueirense. O alujá do orixá é, por tradição, a essência da bateria Furiosa.

Voltando também aos carnavais clássicos de Arlindo e Pamplona, o carnavalesco Alex de
Souza dá liga ao enredo autoreferencial. Para além de todas as passagens mitológicas
pesquisadas pelo artista-curador nos livros, sobretudo de Reginaldo Prandi e Pierre Verger,
colocou-se a questão contemporânea na intercessão entre a filosofia de terreiro – trazida na figura do orixá – com o exercício da mesma no cotidiano do devoto.

“Fugindo, então, do caminho mais simples, o Salgueiro apresenta um enredo que ultrapassa a fronteira do Candomblé. Costurada em cinco setores, a história a ser contada na avenida passeia por vários prismas ligados ao Senhor da Justiça. Um olhar ampliado, para ir além do Orixá, trazendo, inclusive, o mito de Xangô até os dias de hoje, tempos sombrios em que a Justiça e, porque não dizer, a proteção do Orixá se faz muito necessárias em nosso país” (ABRE ALAS/LIESA, 2019, p. 186)

O modo como o enredo foi plasticizado construiu uma curva de afetividades. Começando
pelos diversos simbolismos visuais presentes nas tradições do candomblé, indo ao apogeu da visualidade cristã-europeia até a finalização com estética mais inventiva, percebe-se também a utilização dos vermelhos e seus tons no tapete formado pelo desfile. O orixá Xangô é cultuado majoritariamente no candomblé Ketu, de raíz yorubana. Nesta tradição suas cores são o vermelho e o branco, assim como as cores do pavilhão da escola. Destaco a ala 11, Vestimenta do Orixá, que destrincha visualmente estas conexões.

Como pertencente aos cultos de tradições afro-diaspóricas não há como negar o potencial de catarse encontrado no carnaval ao cantar enredos dados na ancestralidade. Popularmente conhecido como enredos afro, tendem a ser pontos de fácil leitura e identificação na disputa dos desfiles. A utilização desses modos curatoriais pode ser encontrada cada vez mais frequente na Marquês de Sapucaí. De fonte inesgotável, os recortes dados a esses tradições, não só religiosas mas culturais, trazidas pelos negrxs escravizadxs coloca em voga a identificação pelo ancestral comum.

O artista carnavalesco, em tempos de extrema crise financeira no mercado, em conjuntura
com os “contingenciamentos”, desdobra-se na criação de um tema capaz de sustentar no chão da escola a possível precariedade estética. O teórico Ricardo Basbaum batiza essa figura como artista-etc, aquela que flexiona diversas instâncias do próprio trabalho. Alex de Souza é esse figura emblemática ao assinar todas as áreas do trabalho de concepção no desfile de 2019.

O samba-enredo da agremiação foi construído de forma a ativar a sensação de pertencimento daquilo que era cantado. Outro quesito gabaritado pela agremiação, o convite ao tremor do terreiro estava expresso ali na boca do componente. A comunidade tijucana com afinco honrou o canto ancestral da divindade africana. Entretanto houve perda de um décimo no quesito Evolução e um 9,9 foi dado no quesito Harmonia, mas esta nota foi ao descarte.

O quesitos que acabaram prejudicando o ilá de Xangô ser ouvido ainda mais alto foram
Fantasias, Alegorias e Adereços e Comissão de Frente. Os dois primeiros foram
despontuados pela materialidade nas confecções. Questões envolvidas com a deformação de materiais e problemas no acabamento de carros, sobretudo aquele trazendo o cágado Ajapá, foram agravantes na perda do título.

A comissão foi entendida de modo confuso pela má utilização do elemento cênico, o famoso
tripé, de proporções monumentais e de performance bem abaixo do esperado. A concepção
da mesma foi dada através de um prólogo, não setorizado, que deu início a narrativa
curatorial proposta por Alex. Por mais que alguns simbolismos difundidos estivessem já
colocados na cabeça da escola, faltou a suavização dos eventos desdobrados na coreografia.

De modo muito subjetivo coloco minha opinião que o abre-alas da escola, por mais que
estivesse justificado corretamente dentro do enredo, não atendia minhas expectativas. Meu

imaginário a priori ansiava por um abre-alas em cores quentes, opulento, trazendo a vibração do rei de Oyó no primeiro momento. Entretanto sobrou Oduduwa e faltou Alafim. O branco criacional talvez não tenha sido um bom sucessor da comissão já problemática. Por mais óbvio que meu desejo fosse, era real. Talvez até coletivo…

De acordo com as justificativas não houve desconto relacionado a discordâncias no discurso
curatorial e organização do enredo, cuidadosamente elaborado. Ponto pra experiência do
artista em conseguir fluir das tradições yorubanas até as críticas sociais, terminando o desfile na ala 30 , Que a Justiça Seja Feita! – Ativistas. O desencadeamento dos setores aconteceu através da fácil leitura dos elementos estéticos. Portanto, ao analisar as justificativas e notas, percebe-se que a materialidade plástica na obra carnavalesca tenha sido o fato pontual à perda do título.

Por fim, encerro este pequeno texto colocando a pungência do cenário atual em cada vez mais ser necessária a construção de enredos que reflitam as vivências da sociedade e suas dores. Num ano onde Mangueira se torna campeã contando a história daquelxs colocadxs em estado de subjugação, percebe-se a necessidade dos desfiles carnavalescos serem festas de reflexão e mobilização social. Os mecanismos de gatilho dessas propostas são da ordem exponencial, podendo existir através de diversas narrativas. Xangô trouxe juntos de seus ministros críticas plausíveis ao cenário nacional de desmantelamento político, afetando o carnaval diretamente em cortes agressivos à produção dos desfiles. Vivemos um contingenciamento financeiro e, sobretudo, ideológico. Como diz o samba “Ojubá! Quem não deve não teme.”

Referências:

<http://liesa.globo.com/2019/por/03-carnaval/resultado/2019_Liesa_MapaDeNotasCarnaval2019.pdf>

BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

COSTA LIMA, Vivaldo da. O conceito de nação nos candomblés da Bahia. In: Afro-Ásia. Publicação de CEAO, n° 12, Junho de 1976.

LIESA, Livro Abre-alas: Domingo. Rio de Janeiro: LIESA, 2019.

MARÇAL, Juçara. Machado de Xangô. Composição de Kiko Dinucci. 2008. Disponível em:
<https://open.spotify.com/track/0i8CBdlnavMk7CpY2y5Gg3?si=Y1sHnSXaRZa8zLwaXkDt
Iw>

OLIVEIRA, Rosenilton Silva de. Orixás e a manifestação cultural de Deus: uma análise das liturgias católicas “inculturadas”. Rio de Janeiro: Mar de Ideias Navegação Cultural, 2016.

VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: EDUSP, 1999.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. São Paulo: Corrupio, 1981.

ZENICOLA, Denise. A coreografia das iabás. In: O percervejo. Programa de Pós-Graduação em Teatro ou Departamento de Teoria do Teatro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2003.

Rennan Carmo
Membro Colaborador do Observatório de Carnaval / UFRJ
Graduando em História da Arte – Escola de Belas Artes / UFRJ

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