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Lugar de fala: ‘Quero falar sobre a cultura do nosso povo e lutar pelos direitos ainda não conquistados’, diz Samir Trindade

Pai, compositor, sambista: essas características presentes em um único homem revelam o grande talento que passou por longas batalhas até se tornar um profissional

“Heróis da liberdade”, “Voa majestade”, entre outros sucessos, acompanham a carreira do compositor Samir Trindade, 37 anos, dos quais 25 são comemorados no percurso da música, com grandes composições e parcerias nas escolas de samba. Pai, compositor, sambista: essas características presentes em um único homem revelam o grande talento que passou por longas batalhas até se tornar um profissional que tem entre outras aptidões pessoais a paixão pelo samba. Com passagens no Império da Tijuca, Unidos de Padre Miguel, Santa Cruz, Beija-Flor e Portela, escola do coração, Samir é o personagem do “Lugar de Fala” nesta semana e recebeu o site CARNAVALESCO para um bate-papo repleto de amor e samba.

O portelense começou a trilhar o caminho na arte com apenas cinco anos, quando era considerado a atração das festas em casa ao chegar cantarolando os sambas, aos 12 anos o passo foi mais largo com direito ao apoio do avô.

“Fiz um samba para disputar num bloco perto de casa e o pessoal brincou que eu seria mesmo sambista, pedi ao meu avô para comprar uma calça branca, era um bloco, o povo na rua de chinelo e eu vestido de sambista”, declara Samir aos risos ao lembrar do sentimento natural que nasceu após um encontro com o samba e a Portela.

O sonho de criança cresceu com o apoio da esposa Danielli Trindade e dos quatro filhos. A presença da família é fundamental no processo de amadurecimento pessoal e o compositor sentiu essa importância no início da carreira. O cenário de adversidades não estagnou o intérprete que já foi considerado um forasteiro em 2016 ao tentar investir em sambas para Portela e não ser visto, esse foi o alerta que ele precisa para estudar, pesquisar e aos poucos colher os frutos.

“O samba foi me ajudando a construir minha vida, sei que não sou a regra, sou exceção, minha esposa sempre ao meu lado, já torceu para o meu samba sozinha no meio da quadra, hoje minha torcida é uma multidão que viu alguma coisa em mim”.

A trajetória não foi fácil mas contribuiu para um desenvolvimento rápido para enfrentar as dificuldades.

“Tive a minha primeira filha com 18 anos e ainda não tinha me formado profissionalmente, nos primeiros dois anos minha filha morou na casa da minha sogra com a minha esposa, sofria com aquilo e tomei a decisão de morar junto mesmo sem ter condições, ganhava 1 salário-mínimo de R$ 240,00 como ajudante em uma Kombi e pagava aluguel de R$ 200,00 nos fins de semana fazia bicos quando tinha. Os obstáculos podem nos tornar mais resistentes e fortes com um tempo, além de renovar as ideias na hora de compor”.

O envolvimento do compositor desde cedo em competições não o tornou vencedor primário. Samir conheceu as escolas com o apoio do avô, mas durante cinco anos era anônimo na Portela e enfrentou mais dez anos de disputas na quadra da Beija-Flor onde viu os sambas serem cortados nas primeiras fases. Quem o ajudava era o Manelzinho Poeta autor de Menor abandonado da São Clemente, quando ele faleceu, o intérprete resolveu compor sozinho em 2007.

“Tinha visto o Pixulé cantar na final da Beija-Flor em 2002 e resolvi chamar para cantar, ele deu três preços diferentes, fora das condições. Ele pediu pra ir na casa dele cantar o samba e acabou gravando de graça, no ano seguinte indicou outra parceria mais forte, fui aprimorando e em 2010 veio a primeira vitória”.

Na hora da disputa de samba-enredo o objetivo é claro: vencer. Esse é o prêmio mais cobiçado pelos integrantes que colocam em cada letra o desejo de mudar o pensamento das pessoas, resgatar as raízes do carnaval, a cadência e deixar um legado. Samir foi três vezes campeão no Grupo Especial, é concursado, e se orgulha de ter amigos e a família que construiu, além do apoio da torcida que o acompanha voluntariamente nos eventos. Essas vitórias abrem espaços para quebrar correntes e formar novas lideranças que desejam exercer o protagonismo, uma tarefa que envolve a dedicação, arrepio, choro, ansiedade e outras sensações para deixar tudo perfeito e apresentar o amor ao carnaval.

“Quando faço samba que falam da luta do preto, por tudo que nosso povo passou, muitos dizem que me dou bem fazendo samba com cunho de africanidade, na verdade pouco estudei sobre o assunto e minha religião é católica, mas é algo que vem desde os meus ancestrais, quero escrever sambas que falem da vitória do preto que nos exalte, que nos coloque em lugar de realeza, não quero mais cantar sofrimento e dor, quero escrever sobre o quanto somos lindos, falar sobre a cultura do nosso povo e lutar pelos direitos ainda não conquistados e pensamentos implícitos na sociedade, esse é o meu lugar de fala”.

E tudo começou com o apoio de referências dentro e fora da família. Entre as figuras de grande motivação está o Dom Beto, avô de Samir e modelo de homem no qual o compositor aprendeu a equilibrar a vida.

“Via a importância de compor, mas nunca deixou de lado a família, fazer samba é o que eu nasci para fazer, que dá retorno financeiro e prazer ao mesmo tempo, mas sem a minha família nem teria cabeça pra fazer nada é a minha base e isso e aprendi”.

Outra pessoa de grande destaque para o sambista foi o cantor David Corrêa, que faleceu em maio de 2020 devido à Covid-19, ele foi homenageado na introdução do samba-enredo.

“Seus sambas alcançaram o povo, eram simples, contagiantes, e ricos em harmonia, ele é um gênio, certamente o maior compositor da história de enredos da Portela”.

Ser negro na sociedade brasileira é lutar para conquistar o reconhecimento e igualdade racial. Com mais de 130 anos da aprovação da Lei Áurea ainda é fácil perceber os grandes obstáculos e a grande necessidade de desconstruir pensamentos antigos que remetem à escravidão. Isso porque mesmo após o término do período colonial, o Brasil não se estruturou para cuidar da população e hoje enfrentamos o que é chamado de racismo estrutural, o que aumenta a necessidade de pensar em políticas públicas para valorizar aqueles que durante muitos anos foram considerados marginalizados e excluídos devido as marcas históricas. O samba, por exemplo, era ligado apenas à cultura negra e malvista na época, hoje é considerado um símbolo nacional.

“O samba me deu a oportunidade de conhecer histórias e personagens que não conheci e sentar na mesma mesa de pessoas de outra camada social, ser ouvido e repeitado, também o embasamento cultural para falar de igual para igual com qualquer pessoa, venho de um segmento muito discriminado que é o de compositor e uma vez ganhamos um prêmio grande no carnaval e fui informado de que não poderia levar nenhum acompanhante comigo, como sou premiado e não tenho direito de sentar na primeira fileira com quem lutou comigo desde o início? Reclamei e fui atendido, senti ali que era uma voz de importância na luta dos compositores do carnaval”.

Em 2019, das 1.075 mortes no estado do Rio entre janeiro e julho 80% das vítimas eram negras. Os números são reais e revelam uma demanda por fiscalizações dos agentes públicos de segurança na ação de policiais. Samir, homem negro e morador da Vila da Penha, Zona Norte, já sentiu na pele as dores do preconceito quando era mais novo e não entendia o tamanho da injustiça que muitas vezes é considerada comum de maneira equivocada.

“Estava voltando do trabalho dentro do ônibus todo sujo na época e só com minha marmita na mochila, o policial entrou e só me revistou, pediu para ver a minha mochila e marmita caiu no chão, ele gritou mandando pegar. Outra vez fui pedir informação a uma pessoa ela começou a correr não entendi nada”.

Mesmo diante de uma realidade adversa e contraditória há figuras importantes de resistência. Na ala de compositores, os históricos fundadores das escolas de samba, o nome Paulo da Portela faz o coração de Samir pulsar de alegria, pois o príncipe negro é lembrado como o herói dos sambistas. Antigamente, o samba era voltado para o terreiro e o dia a dia da escola, hoje as letras das composições evoluíram e ganharam mais importância, assim como a interesse de sair do lugar comum e expandir um olhar crítico na sociedade.

“Sou discriminado no meu segmento por falar o que penso, às vezes estou certo, em outras não, mas nunca deixo de falar o meu pensamento, influenciar pessoas em busca de um carnaval mais forte é mais importante do que ganhar”.

Viver, viver, viver! Esse é o lema do cantor que leva a vida de forma simples, supera as dificuldades e sabe que o importante é ter saúde para prosseguir decididamente. Além de acreditar que a situação atual, seja boa ou ruim não é definitiva e a postura assumida diante da realidade pode ter impacto nos valores pessoais. A trajetória é longa e ter parceiros contribui para o desenvolvimento de novos projetos, composições, eventos e outras iniciativas com o objetivo de enriquecer o carnaval, pensando nisso, Samir, destaca o papel fundamental de carnavalescos em preparar novos sambistas assim como eles foram convidados e influenciados por outras pessoas.

“Temos um legado a carregar, mas não queremos mais ser rei só por um dia como cantou Candeia, quero ver o sambista do morro mandando no carnaval e não só como empregado da festa, aí sim, o pensamento vai ser em prol do samba, das escolas, quero ver carnavalescos pretos de sucesso em destaque, temos poucos. O samba veio dessa negritude, é a raiz dentro de nós, quando faço meu samba de alguma forma me sinto herdeiro de Candeia, mas quando brigo pelo samba, quando peço importância para as escolas, me sinto mesmo que ainda tenha muito o que aprender um cara que ama, estuda e orgulha o legado de Paulo da Portela”, finaliza o compositor.

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