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Mauro Cordeiro: ‘Protagonistas do Carnaval de 2022’

'Das várias possibilidades analíticas que o conjunto dos enredos descortinam eu destaco uma para esta coluna: os protagonistas dos desfiles serão, majoritariamente, os sambistas que construíram as escolas'

Relógio zerado, soou a sirene. O locutor oficial do evento anuncia a escola. Em cinco minutos o desfile terá início. Os fogos de artifício pintam o céu nas cores da bandeira e atestam que é chegada a hora tão ansiada. As alegorias são, uma a uma, acionadas para entrar na avenida. É o momento dos últimos ajustes e retoques, os destaques vão assumindo seus lugares e a iluminação faz os carros alegóricos e tripés brilharem para encantar o público. Os componentes, já fantasiados, se organizam nas alas tomando suas
posições. Existe uma tensão que paira no ar. Ressoam os tambores. Este ritual se repete escola após escola. Depois de todo um ciclo anual de fabrico e produção, a escola, finalmente, vai desfilar. E quando entrarem na avenida para o carnaval de 2022 as escolas de samba do carnaval carioca estarão encerrando um longo inverno sem folia.

Os milhares de componentes que irão cruzar o Sambódromo da avenida Marquês de Sapucaí no próximo ano serão protagonistas de um carnaval histórico. Em 2022 estaremos completando noventa anos do primeiro desfile, aquele organizado por iniciativa do jornalista Mário Filho, através do jornal Mundo Sportivo, em 1932 na lendária e mítica Praça Onze. Mas não é apenas pelo nonagésimo aniversário que o próximo cortejo será histórico; na realidade, será o desfile da retomada após o fato inédito de termos um ano sem desfiles de escola de samba. É bem verdade que em 1938 as escolas não foram
julgadas e este carnaval ficou sem resultado, mas elas desfilaram. Já o ano de 2021 foi marcado pela impossibilidade da folia frente a pandemia de Covid-19 que vitimou milhares de brasileiros. Graças ao avanço da vacinação e seguindo os ditames da ciência, os preparativos estão a todo vapor e o carnaval em fevereiro já é mais que um sonho.

Quando cruzam a pista e encantam o público, as agremiações apresentam discursos, narrativas construídas para serem encenadas neste grande espetáculo de projeção internacional. Estes discursos e narrativas são os enredos. O enredo a ser apresentado na avenida é aspecto incontornável para compreensão das relações estabelecidas em uma escola de samba, pois, é a partir dele que se tece a confecção de um desfile, perpassando os diversos atores sociais de uma agremiação. A definição, a divulgação e a transformação
de uma ideia em um enredo de escola de samba, da coletividade, são momentos decisivos e tensos da agenda de todas as agremiações. O sucesso deste processo, da apreensão e da coletivização da ideia do enredo, é o primeiro passo para um desfile de sucesso. Esta centralidade do enredo pode ser melhor compreendida pois é este elemento que articula o desenvolvimento das linguagens artísticas estruturantes do préstito: musical e visual. O tema escolhido precisa ser transformado em versos e melodia pelos compositores, em ritmo pela bateria, em canto e dança pelos componentes. Por outro lado, o enredo também precisa produzir figurinos e alegorias, elementos visuais que compõem sua narrativa e que são criados pelos múltiplos artistas e trabalhadores do barracão, sob a centralidade do carnavalesco.

A safra dos enredos para 2022 tem provocado intensos debates. Cada um deles deve ser entendido nas suas potencialidades e limites, caso a caso. Das várias possibilidades analíticas que o conjunto dos enredos descortinam eu destaco uma para esta coluna: os protagonistas dos desfiles serão, majoritariamente, os sambistas que construíram as escolas. Ao invés de navegadores, príncipes, princesas, imperadores, ditadores, escravocratas, bandeirantes e toda sorte de personagens que, costumeiramente, são
tematizados nos desfiles, o ano de 2022 nos brindará com uma série de referências e reverências aqueles que fizeram da festa o que ela é!

Talvez o caso mais emblemático seja o da Estação Primeira de Mangueira que cantará três baluartes fundamentais em sua gloriosa história. Também se destaca a Mocidade Independente que, ao tematizar Oxóssi, reverência a genialidade de artistas populares que a consagraram como “a escola de samba que bate melhor no carnaval”.

Esta reverência das escolas aos seus bambas é, ao mesmo tempo, um movimento político de preservação da memória; e, também, a valorização do samba como espaço de produção de conhecimento ao reconhecer a genialidade de seus produtores. Dentre estas referências e reverências que as escolas irão promover no próximo carnaval destaco a da Beija-Flor que ao empretecer o pensamento se aproxima da sua própria história.

Nilópolis é um dos menores municípios em extensão do país, mas abriga uma das maiores instituições da cultura nacional. No natal de 1948, naquela pequena cidade da Baixa Fluminense, era fundado o Bloco Associação Carnavalesca Beija-Flor por um conjunto de bambas da Baixada Fluminense. Em 1953, o já vitorioso bloco, foi inscrito na então Confederação Brasileira das Escolas de Samba para desfilar como escola; nascia, assim, a Deusa da Passarela. A iniciativa de transformar aquele bloco em escola foi de uma figura central na história da agremiação: Silvestre David da Silva, o Cabana.

Fruto de um período anterior à consolidação do modelo espetacular dos desfiles, Cabana foi um autêntico intelectual do samba e do carnaval carioca. Além de exímio compositor, sete vezes vencedor da disputa de samba-enredo; também foi autor e desenvolveu os enredos da escola, por cinco carnavais. Antes da afirmação da figura dos carnavalescos, os processos de autoria e desenvolvimento de enredos eram de responsabilidades dos sambistas das escolas. Na Beija-Flor, Cabana se consolidou como grande destaque.

Durante as décadas inicias da escola, em seu período de criação e afirmação no carnaval carioca, foi a liderança artística de Cabana quem conferiu a Beija-Flor identidade. Cabana foi o grande soba nilopolitano. Nei Lopes, em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, define soba como uma palavra que, no contexto do período colonial em Angola, se referia a um chefe, uma autoridade principal detentora de poder e prestígio. Um soba é
um líder, um comandante político, administrativo e social de seu território.

O belíssimo samba-enredo da Beija-Flor para o próximo carnaval afirma em seu refrão: “Mocambo de crioulo, sou eu, sou eu! Tenho a raça que a mordaça não calou. Ergui o meu castelo, nos pilares de Cabana, dinastia Beija-Flor”. Se Nilópolis é um mocambo, o grande soba desta comunidade é Cabana, o intelectual negro que através de sua arte ajudou a construir esta escola de
vida.

  • Mauro Cordeiro: Doutorando em Antropologia (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (PUC-Rio) e Licenciado em Ciências Sociais (UFRRJ). IG: @maurocordeiro90 e TT: @maurocordeirojr
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