InícioGrupo EspecialMilton Cunha começa série no CARNAVALESCO com texto de Leonardo Bora

Milton Cunha começa série no CARNAVALESCO com texto de Leonardo Bora

Oi queridos, começando esta série de publicações dos pesquisadores e autoridades do Obcar, abro com o querido Leonardo Bora, carnavalesco da Grande Rio, juntamente com Gabriel Haddad (também OBCAR), e professor da EBA-UFRJ. Escolhi esta abertura do Bora, pois acho pertinente iniciar com Quixote e os pensamentos sobre a loucura. A nossa cara, amantes da folia e interessados na sistematização do Episteme Ziriguidum.

REMOENDO FANTASIAS QUIXOTESCAS

Por Leonardo Bora

Poucos personagens de ficção foram tão reprocessados ao longo dos séculos quanto “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, o protagonista da obra de mesmo nome assinada por Miguel de Cervantes. Publicado em 1605, o romance (ou seria novela? A classificação gera inúmeros debates, mas o foco da prosa não é a taxonomia literária) mexe com o imaginário coletivo e é capaz de criar imagens mentais mesmo entre aqueles que nunca mergulharam nas páginas de Cervantes – que são muitas e bastante enoveladas, repletas de cenas empolgantes. Dragões, moinhos, brasões, castelos, armaduras, rebanhos de carneiros. Espadas, escudos, bandeiras. No fértil campo da teoria da literatura, nomes como Jorge Luis Borges e Erich Auerbach teceram reflexões fundamentais, constantemente revisitadas. O primeiro, na figura do personagem Pierre Menard, questiona os limites da autoria e enxerga Quixote enquanto um símbolo potente de criticidade e provocação. Auerbach, por sua vez, dedica um dos capítulos de sua obra “Mimesis” ao imaginário quixotesco, afirmando, em certo momento, que “o livro todo é um jogo, no qual a loucura se torna ridícula quando exposta a uma realidade bem fundamentada.”

É a loucura, sem dúvidas, um tema dos mais trabalhados ao longo da história da literatura ocidental. Na mesma obra mencionada, Auerbach discorre sobre a máscara de loucura utilizada por Hamlet, o “príncipe cansado” de William Shakespeare. Autores tão díspares como Joaquim Maria Machado de Assis e João Guimarães Rosa trabalharam o tema em obras como “O Alienista” (do primeiro) e “Sorôco, sua mãe, sua filha” (do segundo). Curiosamente, ambos os autores viraram personagens de um mesmo enredo carnavalesco – aquele apresentado na Marquês de Sapucaí pela Mocidade Independente de Padre Miguel, em 2009 (ano em que foram celebrados os centenários de falecimento de Machado de Assis e de nascimento de Guimarães Rosa). A narrativa, no entanto, insistiu em enfatizar aspectos biográficos da história dos homenageados (um retrato de Cervantes deu o ar da graça em uma das fantasias de ala, inclusive, junto à imagem de Arthur Schopenhauer). As obras permaneceram em segundo plano, para a decepção dos leitores literários. O papo de agora, porém, é sobre o Quixote no samba, enrolado em serpentinas. Voltemos aos moinhos!

Quando a Unidos do Porto da Pedra, escola de samba de São Gonçalo, apresentou, em 1997, no Grupo Especial do Rio de Janeiro, um enredo sobre a loucura intitulado “No reino da alegria, cada louco com sua mania”, D. Quixote mereceu uma sequência de alas (a bateria vestiu a roupa “O louco Cervantes”) e um carro alegórico. Nas palavras do carnavalesco Mauro Quintaes, parte do texto da sinopse apresentada ao público e ao corpo de jurados, “a obra nos dá a sensação de que começamos a flutuar no espaço, regressivamente, em direção àquele romântico período de puro cavalheirismo, quando a honra era mais valiosa que a própria vida (…).” O autor abraça a brincadeira e sugere que D. Quixote, nas terras fluminenses, enlouqueceria lendo os Diários Oficiais e lutando contra os moinhos de sal da Região dos Lagos. O júri do Estandarte de Ouro aprovou a brincadeira e concedeu ao Tigre de São Gonçalo o prêmio de melhor enredo. Quinta colocada naquela disputa, a Porto fez história!

Quintaes voltou a cortejar Quixote no desfile que assinou em 2003, à frente da Unidos do Viradouro, outra escola em vermelho e branco sediada do outro lado da Guanabara, em Niterói. O enredo “A Viradouro canta e conta Bibi – uma homenagem ao teatro brasileiro” contou e cantou a trajetória de Bibi Ferreira, destacando, em certo momento, a participação da atriz no musical “O Homem de La Mancha”, de Dale Wasserman, cuja adaptação brasileira, em 1972, teve as letras traduzidas por Chico Buarque e Ruy Guerra. Bibi interpretou Dulcinéia del Toboso, a musa do cavaleiro andante – daí a visão de enormes dragões e moinhos de vento, no quarto carro alegórico. Não à toa, a recente montagem de “O Homem de La Mancha” dirigida por Miguel Falabella (homenageado pela Unidos da Tijuca, em 2018 – Quixote marcando presença!) dialogava visualmente com a obra de Arthur Bispo do Rosário, artista cuja produção é um convite para que se pensem as fronteiras entre arte e loucura. Bispo, que fechou o cortejo de 1997 da Porto da Pedra, desfilou outras vezes, na Marquês de Sapucaí – inclusive na Tijuca, Manto da Apresentação e tudo.

Indubitavelmente, a mais completa e profunda aparição de Dom Quixote na Passarela do Samba se deu por meio da pena de Rosa Magalhães, artista que já apresentou inúmeros enredos que dialogam com a literatura, evocando nomes como Ariano Suassuna, Alexandre Dumas, Michel de Montaigne, Thomas More e Hans Christian Andersen (e é preciso destacar que o apreço de Rosa pelos livros pode ser explicado pela genealogia: ela é filha de Lúcia Benedetti, escritora e teatróloga, e de Raymundo Magalhães Júnior, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras). No carnaval de 2010, à frente da União da Ilha do Governador, a carnavalesca apresentou a narrativa “Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro dos Sonhos Impossíveis”. Um enredo mais do que apropriado para o contexto de que falamos, afinal, a tricolor insulana retornava ao Grupo Especial depois de oito anos no Grupo de Acesso. “Abrir o domingo” nunca foi tarefa fácil: permanecer no “grupo de elite”, no mais das vezes, não passa de um “sonho impossível”. A Ilha abraçou o delírio, “vestiu a fantasia” e “foi à luta”, como sugeria o animado samba de enredo assinado por quase um time completo: Grassano, Gabriel, Márcio André, João Bosco, Arlindo Neto, Gugu das Candongas, Marquinho do Banjo, Barbosão, Ito e Léo. Um dos mais populares textos da literatura ocidental foi traduzido com brilhantismo no contexto da Passarela do Samba, não faltando os instigantes diálogos que Rosa costuma estabelecer com nomes das artes plásticas (Pablo Picasso, Salvador Dalí e Cândido Portinari emprestaram cores e traços para o conjunto visual proposto pela carnavalesca, sem falar na explícita conversa com as ilustrações de Gustave Doré). Nas alegorias, o detalhismo e o acento cenográfico. A cultura espanhola como um todo se viu homenageada na passagem da Ilha, sobrando rosas vermelhas, leques, touros e mantilhas. O sonho se mostrou possível: a Ilha não só permaneceu no Grupo Especial como arrancou lágrimas de muita gente – e a injustificável décima primeira colocação é digna de repúdio.

Portinari, mencionado acima, realizou uma série de ilustrações a partir da leitura de Dom Quixote, imagens que posteriormente receberam glosas poéticas de Carlos Drummond de Andrade. Não por outro motivo o “Engenhoso Fidalgo” retornou à Sapucaí em 2012, no belo desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel, assinado por Alexandre Louzada. O experiente carnavalesco propôs um canto de amor a Portinari, passando em revista as diferentes fases do artista. A alegoria quixotesca apresentava uma grande escultura de Quixote sobre o cavalo Rocinante, em meio a livros e lápis de cor – elementos decorativos que estruturavam uma espécie de castelo medieval. Em 2016, a estrela da Zona Oeste veria Quixote ser alçado ao posto de protagonista de um enredo cujo desenvolvimento plástico foi assinado por Alexandre Louzada e Edson Pereira. Naquela ocasião, o personagem de Cervantes conduziu os espectadores por um passeio pela literatura nacional cujo objetivo era mapear e “lavar a jato” as “manchas” da nossa história. O desfecho do périplo flertou com 2009, quando Machado e Rosa dançaram descompassados – Rocinante, confuso, tropeçou no galope.

Quem voou alto e sambou no miudinho foi a escola do Morro da Serrinha, o Império Serrano, no carnaval de 1996. Naquela ocasião, o “Reizinho de Madureira” homenageou o sociólogo Herbert José de Souza, conhecido como Betinho – e a sucessão de diminutivos acaba revelando do carinho com que o enredo foi tratado e traduzido visual e musicalmente. Os carnavalescos Ernesto Nascimento e Actir Gonçalves materializaram a narrativa “Verás que um filho teu não foge à luta” com o mais complexo aroma da sofisticação: a simplicidade. O samba, composto por Aluísio Machado, Lula, Beto Pernada, Arlindo Cruz e Índio do Império, falava em um “moderno Dom Quixote”, ser com “mente forte” que surge para guiar um franzino e crucificado Brasil na luta contra a fome, a miséria, a violência, a concentração de renda e as demais mazelas sociais. Menos louco e mais idealista: símbolo de luta, honradez e integridade.

As esculturas de Quixote e Sancho que adornavam a alegoria imperiana dedicada ao ideário quixotesco (com torres que mais pareciam carrancas) lembravam a sutileza (para muitos, apenas peças desproporcionais) com que o Engenhoso Fidalgo foi retratado na apresentação de 1987 da Estação Primeira de Mangueira, quando da homenagem a Carlos Drummond de Andrade. Desfile polêmico (historicamente ofuscado pelo desbunde tupinicopolitano da Mocidade Independente, proposta radical de Fernando Pinto), “No Reino das Palavras” teve assinatura de Júlio Mattos, o Julinho da Mangueira, artista pouco reverenciado nas rodas de prosa carnavalesca. Sob um sol totalitário, a Verde e Rosa desfilou a poética de Drummond com alegria e singeleza, entoando os versos de Rody, Verinha e Bira do Ponto, imortalizados na voz de Jamelão: “É Dom Quixote, ô; é Zé Pereira; é Charlie Chaplin no embalo da Mangueira!” Imagino a cena: Quixote desceu o morro, bebeu cerveja, vestiu o manto da Mangueira e caiu na farra. Concorda com o outro poeta: o mundo é mesmo um moinho. Nada mais carioca, delirante, encantador, varrendo as esfinges das encruzilhadas. É com ele que eu vou!

  • Leonardo Bora é Mestre e Doutor em Teoria Literária pela UFRJ, licenciado em Letras Português-Inglês pela PUCPR e Bacharel em Direito pela UFPR. É professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e, juntamente com Gabriel Haddad, um dos carnavalescos do GRES Acadêmicos do Grande Rio.
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