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‘Não interessa a cópia, interessa saber como o Severo e o Cahê refazem’, afirma Milton Cunha sobre reedição de ‘Fatumbi’

Fotos: Wifger Frota/ Reprodução Internet

A União da Ilha do Governador anunciou, na noite da última quinta-feira, que irá reeditar o enredo “Fatumbi – A ilha de todos os Santos” no próximo carnaval. O tema, originalmente apresentado em 1998, é de autoria do ex-carnavalesco e atual comentarista da TV Globo Milton Cunha. Trata-se de um dos trabalhos mais emblemáticos de toda a carreira de Milton e que rendeu um dos maiores sambas da discografia da tricolor insulana. Apesar da modesta nona colocação no Grupo Especial naquela ocasião, o desfile entrou para história da escola e marcou época na folia carioca.

“Há 22 anos, a gente fez este belo trabalho, este belo enredo. É um enredo robusto, é um enredo profundo, é um enredo daqueles tradicionais mesmo, vida e obra, e que traz junto a grandeza da negritude. Então, escolher reeditar isso é tocar de novo no momento emocionante, que deu Estandarte de Ouro de enredo, de revelação… Acho que eles retornam a um momento de poesia muito grande. Essa vontade de rever grandes tempos é o que leva a Ilha a tocar nesse momento importante da história dela. É um samba que está ali no coração de todo mundo. Foi um momento muito feliz da história da Ilha. Então, acho que eles querem voltar a serem felizes”, avaliou Milton Cunha, em entrevista ao site CARNAVALESCO.

Para reportagem, Milton relatou que antes do anúncio oficial da reedição, ele foi procurado por Cahê Rodrigues e Severo Luzardo para uma sondagem inicial. “A Ilha foi muito respeitosa. Primeiro me ligou os dois carnavalescos, meus amigos íntimos, e me falaram que havia uma possibilidade de fazer. Mas ainda era uma conversa entre artistas, então era assim muito introdutório: se for, se escolherem, se baterem o martelo… E aí eu ia dizendo: ‘Nossa, vocês dois são um máximo, vocês dois são fantásticos para revisitar um tema desse’. Até porque os dois acompanharam a minha carreira toda. O Cahê, ainda de cabelo longo, de cabelo enorme, era presidente de ala de comunidade no desfile sobre a Margareth Mee (Beija-Flor 1994),  então é uma criatura que viu tudo. E o Severo, lá de longe, acompanhou e, quando chegou aqui no Rio, me apresentaram para ele. Isso é ano 2000. Ele desenhava moda e já tava ali comigo, olhando barracão e tal. São dois artistas que me conhecem muito, conhecem a obra e sabem agora da importância de revisitar. Tudo que a gente conversa, eu e eles, é sobre como que você recria os clássicos. O bacana da recriação é que é uma versão nova, fresca, moderna, sobre algo que está na memória. Então é lindo gente com entendimento recriar. Não interessa a cópia, interessa saber como o Severo e o Cahê refazem essa trilha dessa vida linda”, contou.

Já com o martelo batido internamente na escola, foi a vez do presidente insulano, Djalma Falcão, procurar Milton para uma conversa. “Quando chegou agora, o Wilsinho (Alves, diretor de carnaval e harmonia) me ligou dizendo: ‘Milton, querido, o Djalma vai lhe ligar’. E aí eu disse: ‘Nossa, Wilsinho! Diga ao Djalma que eu abençoou, que eu aplaudo, que eu estou muito feliz e que eu estou louco para ver o resultado lá na Avenida’. Não quero participar de processo, quero participar de obra final. Eu quero estar lá, aplaudindo eles da plateia, e cantando junto. Agora, o processo da recriação eu não posso estar, porque justamente eu não pertenço a ele. Eu pertenço ao universo que ficou lá atrás. E o bacana é eu dar o espaço, permitir que a obra cresça, que essa nova visita aconteça e que eu a veja. Porque a intenção não é a recriação a partir da minha intromissão. Deixa a Ilha enorme, se fazer linda, e eu vejo lá o resultado. Então, quando Djalma ligou, eu disse: ‘Que beleza, é uma obra linda da União da Ilha’. O desfile, o enredo, o samba é da União da Ilha”, declarou Milton Cunha.

O ex-carnavalesco e atual comentarista ainda expôs o seu ponto de vista de que a reedição não deve ficar presa ao que foi apresentado no desfile de 1998. “É lindo ver a assinatura agora da emissão vocal do poderoso Ito, no samba que foi cantado divinamente pelo Rixxah. Assim como é lindo ver também a assinatura dos dois carnavalescos em cima destes temas que eu já trabalhei, lá atrás. E aí como os diretores de bateria vão refazer os caminhos do Mestre Paulão? Então, é lindo deixar todo mundo livre para as novas assinaturas, sem comparação. Não é comparar, é deixar a obra nova viver, como deixou a obra antiga existir. Isso é liberdade, é democracia, é convivência, é possibilidade, é obra em construção, é processo não fechado”, alegou.

Quem é Pierre Verger? Quem é Fatumbi?

No entanto, apesar de já ter tido a história contada na Marquês de Sapucaí, muitas pessoas não conhecem  e nem ouviram falar de Pierre Verger e/ou de Fatumbi. Por este motivo, o site CARNAVALESCO pediu para que Milton explicasse, nas palavras dele, quem são estas duas figuras que norteiam todo este enredo da Ilha.

“Fatumbi foi a força do espírito maior que o corpo. O corpo era branco, a pele era clara, mas quando ele está defronte da grandeza da negritude, ele sucumbe a esse nascimento, a esse passado branco francês. Ali morre Pierre Verger, o branco, já aos 22 anos de idade. E quando defronte da negritude, ele ingressa no universo negro onde ele vai passar 70 anos. Ele permite que o espírito de Ifá faça ele renascer. Então, para além da cor da pele, para além do nascimento, Fatumbi tinha um entendimento sobre a beleza e a grandeza da negritude que fizeram com que ele se entregasse de corpo e alma a esse trabalho mítico, místico, epopeico de documentação da negritude. Portanto, Fatumbi foi o mais negro dos brancos. Fatumbi foi o que entendeu totalmente o deslumbre que é a grandeza da negritude africana. Fatumbi viveu o mistério negro, o mistério de Ifá que se manifestou nele, mudou o destino dele. Afinal, que homem é esse que branco nascido, negro transforma seu trabalho? Diria para as novas gerações que Fatumbi é um humano que dedicou sua obra para documentação da grandeza da negritude. É importante naquele momento em que o mundo estava dividido pelo colonialismo, as colônias e os colonizadores, e ele saí desse ponto de vista do colonizador e vai viver e morar a realidade daquela gente. E aquela gente o assume como um filho de outra cor, mas na alma, no mistério, de dentro do sistema africano”, explanou.

Importância da reedição e o legado de Fatumbi

Na visão de Milton, revisitar “Fatumbi” no atual momento é algo extremamente pertinente, já que a temática chama a atenção para temas ainda carentes e/ou necessários na sociedade em 2020. “Qual é o ensinamento de Fatumbi historicamente? É o fato de que um aristocrata branco se apaixona de tal forma pela grandeza da africanidade, que ele se muda e vai morar 40 anos ali no Golfo do Benim. A vida dele, o existencialismo dele, é quatro décadas vivendo no meio daquela população. Então, ele não se coloca naquela posição do branco observador, ele é o branco vivenciador da outra cultura. São 40 anos lá e mais 30 aqui em Salvador, no Brasil. Dão 70 anos de experimentação da negritude. Isso é uma ode de amor, de respeito, de entendimento de que o tempo te dará a dimensão da grandeza da negritude. Ele ficou 20 anos em Paris, experimentou todos aqueles luxos brancos e isso não bastou para vida dele. Ele então vai ao destino, ao Ifá. E é aí que ele chega nessa configuração que o fazia feliz: estar no meio dos negros. É um encontro de cor de pele, de alma, entendimento”, iniciou.

“Isso importa hoje demais, porque ele é a não exotização, ele é a não espetacularização. Ele está tão dentro desse universo, que ele fica em um canto fotografando, e as pessoas continuam fazendo suas atividades naturalmente. Ele já não é um elemento de fora. As fotos de Fatumbi são fotos de dentro. Isso muito nos ensina sobre vivenciar a verdade, a realidade. Já que ele não tinha o lugar de fala, porque era branco, ele vai entender este lugar de fala negro se jogando dentro da sociedade para olhar como um morador, como um existenciador. E quando ele é aceito e sagrado babalawo, ele então escreve a obra dele, os livros dele, de dentro. É um conhecimento interno, não é um conhecimento do etnólogo de fora. Claro que isso também tem, a pesquisa histórica e tal todo mundo pode fazer sobre os fluxos da escravidão, mas é um conhecimento de dentro”, completou Milton.

Questionado acerca do que há de mais significativo e simbólico na história de Fatumbi, Milton Cunha respondeu: “O mais marcante de Verger é o amor dele pela negritude, que foi transformado em documentação, em pesquisa histórica muito atenciosa e muito criteriosa. A partir das vivências, ele estrutura uma obra. A benção da mãe senhora, a grande ialorixá do Axé do Opó Afonjá, a amizade dela com Fatumbi, é um aval da negritude sobre as pesquisas e as questões levantadas por Pierre Verger. Então, o mais importante é a autorização, a aceitação que a negritude deu ao Pierre Verger para documentar e escrever a obra. Ou seja, é uma obra autorizada pelas grandes autoridades negras do Candomblé da época, em Salvador. Esse ponto de vista de dentro é que naturaliza a documentação do Pierre Verger. Ele é um abraçado pela negritude para fazer a sua obra de dentro. Então, não é uma obra que explora, que espetaculariza. É uma obra que documenta as verdades da negritude, expostas pela própria, para ele. Então, Verger como um transporte do lugar de fala, da negritude, do Candomblé da Bahia dos anos 50,

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