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Renato Lage, um narrador da metalinguagem

Milton Cunha: “Hoje vamos entender a admiração da critica de arte e folia, Daniela Name. Acompanhando a folia há duas décadas, ela reivindica lugar de destaque para a metalinguagem de Renato Lage. Estes textos reunidos em estilhaço, acabam formando um grande painel sobre vários entendimentos, teóricos ou práticos, de um sentimento que nos une: o respeito a fabulosa narrativa da escola de samba. Evoé!”

Por Daniela Name

Estudar Renato Lage, e pensar nos seus mais de 40 anos de avenida como uma fonte jorrando imagens, sempre a serviço de grandes histórias. Entender a simbiose entre desenho e escultura realizada por esse artista extraordinário como um desejo de comunicação direta com o público; como a ambição de que os enredos contados plasticamente sejam assimilados de forma mais imediata e veloz.

Desfiles são uma sucessão de narrativas que passam em minutos diante de quem está nas frisas, camarotes e arquibancadas, ou mesmo em casa, assistindo ao cortejo pela TV. É preciso ser generoso com esse público. Renato é: há anos, inventa recursos de síntese que facilitam os processos de percepção de quem está diante de sua obra. Incorpora seu desenho à estrutura de carros e figurinos; economiza gestos, sem, no entanto, abrir mão da complexidade de camadas narrativas e seus desdobramentos.

Por tudo isso, esse é um texto que procura reconhecer Renato como um artista muito além dos clichês “mago” ou “high-tech” que vêm sendo repetidos à exaustão para classificar seu trabalho. Ele é bem maior que os rótulos que o recobrem, além de ser, ainda, uma das raízes mais robustas da nova geração de carnavalescos que tem movimentado os desfiles.

Sim, muito se fala desse grupo de jovens talentos, que estaria interessado em marcar as relações entre carnaval e política. Mas resumir dessa forma é tecer um cobertor curto demais para dar conta do corpo de um fenômeno que tem ocorrido no Sambódromo. Toda obra de arte é política, mesmo quando deseja não ser. A isenção é um projeto impossível no campo da subjetividade. Escolher o espetáculo, a imagem pela imagem – a imagem oca, enfim, desprovida de discurso – é uma opção tão política quanto a de realizar um desfile rotulado, geralmente de forma rasa, como “engajado”. Por tudo isso, prefiro dizer que o grupo de criadores que trouxe novas propostas para nosso carnaval é uma “Geração de narradores”. Artistas como a dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad, Jorge Silveira, Jack Vasconcelos e Leandro Vieira têm recuperado a importância do enredo.

Vem dessa vontade de contar boas histórias o sucesso de seus projetos plásticos e sua imensa capacidade de gerar imagens antológicas, que ficam guardadas para o futuro e sobrevivem à efemeridade do cortejo daquele ano. Dois artistas ainda em atividade mantêm-se como fonte de inspiração e de vigor para essa geração: Rosa Magalhães e Renato Lage. A capacidade cênica e narrativa de Rosa, nossa grande antropófaga, tem sido merecidamente iluminada por diversas pesquisas. Destaco as realizadas por Leonardo Bora e Milton Cunha, artistas que são também grandes pensadores do carnaval. Sobre Renato, ainda há pouco dito e escrito cobrindo seu trabalho a partir de uma análise estética e conceitual, e um artista de sua relevância merece ser revisitado de forma insistente, em mergulhos cada vez mais profundos.

Muitos que comentam carnaval esperam pela “próxima novidade”; já eu afirmo, entre a brincadeira e a verdade, que anseio desesperadamente pelo momento em que as imagens vão se repetir – ou quase. Isso facilita o entendimento das inquietudes presentes na obra de um artista. Aquilo que pulsa precisa voltar, para que seja novamente explorado. Na história de Renato, chama a atenção, por exemplo, como o monstro de “Macobeba” (seu segundo desfile como carnavalesco-titular, na Unidos da Tijuca, 1981) parece ganhar uma atualização na figura do garotinho gamer de “Marraio, feridô, sou rei” (Mocidade, 1993). O que os olhos de televisão, projetando imagens de dentro para fora na Sapucaí, podem nos contar sobre o processo criativo do artista?

Em primeiro lugar, sobre a formação de Renato com um homem de televisão, alguém que se estruturou como profissional nos departamentos de direção de arte de grandes emissoras, acostumando-se a usar poucos elementos para comunicar muitas coisas. A imagem luminosa em movimento é uma constante em seus desfiles, seja nas inúmeras homenagens ao cinema, seja através da presença da TV, tanto o meio em si (“Chacrinha”, Grande Rio, 2019) quanto o que ele acarreta (“Fama”, Salgueiro, 2013).

As TVs de “Macobeba” e “Marraio”, são, no entanto, um passo além, pois estão nos próprios olhos dos personagens. Um olhar que é feito de imagens; imagens que vêm de dentro para fora dessas criaturas, como se elas nos dissessem que é de imagens – inúmeras outras – que são feitas. Sim, cada imagem criada traz em seu ventre uma coleção de outras. E cada alegoria de carnaval, passando em movimento diante da plateia, só tem a chance de sobreviver como imagem, principalmente imagem televisiva, como as que esses olhos irradiam.

É nesse ponto que eu chego naquela que talvez seja a grande contribuição da obra de Renato à história do carnaval e às gerações posteriores a ele: sua imensa capacidade de metalinguagem. Trocando em miúdos: suas criações plásticas, em especial as alegorias, têm se colocado plenamente a serviço do enredo, mas são também um comentário profundo sobre o próprio fazer artístico.

Os carros alegóricos de Renato – nas últimas décadas criados a partir da fértil parceria com Márcia Lage – frequentemente comentam o fato de que são imagens (como no caso das TVs e do cinema). Também fazem questão de revelar sua estrutura, de dizer daquilo que são feitos e, mais do que isso, de incorporar elementos dessa estrutura como desenho, como elemento plástico. Nenhum outro artista da história da avenida foi tão eficaz nesse quesito: o de transformar em desenho, em elemento de comunicação artística com o público, um arcabouço que geralmente seria escondido por revestimentos e floreios.

Um exemplo radical é a alegoria das minas de ouro no desfile do Salgueiro de 2015 (“Do fundo do quintal – Saberes e sabores na Sapucaí”). Outro artista talvez criasse inúmeras peças de isopor para criar a atmosfera da mina; já Renato usou a própria tubulação em ferro dos carros para contar sua história, tirando da estrutura do elemento tridimensional o seu desenho – econômico, mas extremamente denso; sintético, e por isso com grande poder de comunicação com os observadores.

Há ainda uma terceira característica, talvez a mais crucial, que faz de Renato um artista da metalinguagem: o modo como usa seus desfiles para falar, metaforicamente, do próprio processo criativo dos artistas. Não por acaso, ao longo de sua carreira temos inúmeros enredos contando histórias de gênese: de “Criador e criatura”, na Mocidade de 1996, a “Candaces” , no Salgueiro de 2007; de “Gaia”, também no Salgueiro, em 2014, ao lindíssimo “Guajupiá, terra sem males” apresentado pela Portela no ano passado – e cuja ausência do Desfile das Campeãs até hoje me intriga, para usar um verbo ameno.

A gênese faz com que os globos terrestres se repitam nas alegorias de Renato. As três mais emblemáticas são o mundo-útero de “Chuê Chuá” (1991), segunda alegoria desse desfile histórico; o carro das mãos de Deus em “Criador e criatura” e o carro da gênese em “Gaia”. Essas duas últimas têm em comum o fato de serem, propositalmente, mundos incompletos, sem detalhamento minucioso. Renato insinua um vir-a-ser, algo que está em processo durante o próprio desfile.

A vontade de falar das gêneses e do próprio criar é, em última instância, uma característica que faz do artista alguém que comenta, através das metáforas que cria, o processo e a importância de um enredo, como fonte que irriga todos os quesitos. Criadores e criaturas; o fogo como fonte da vida; dos microcosmos, o big bang; o modo como os tupis viam a criação do mundo: todas são, no fim das contas, figuras de linguagem da própria criação do artista, formas através das quais Renato tem feito autorretratos e retratos de seus colegas de ofício. É por isso que, se hoje existe uma “Geração de narradores”, Renato é uma das fontes que a irriga. Um processo que vem se construindo, traço a traço, e que estará sempre em mudança, jamais estará concluído. Que sorte a nossa poder testemunhar tantas histórias.

* DANIELA NAME é crítica de arte. Doutora em Comunicação e Cultura, Mestre em História e Crítica da Arte e graduada em jornalismo, sempre pela UFRJ. É curadora-geral da Caju Conteúdo e Projetos, que mantém a Revista Caju e realiza projetos de exposições, livros e cursos.

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